Olá pessoal, tudo certo?
Hoje retomaremos um tema que está muito em voga no âmbito dos Tribunais Superiores e, naturalmente, tem refletido bastante na constância de cobrança em concursos públicos, notadamente na área do processo penal.
De acordo com o estabelecido pela Constituição Federal de 1988, a regra em nosso ordenamento jurídico é a inviolabilidade domiciliar, invocando como situações excepcionais as hipóteses de (i) consentimento do morador, (ii) flagrante delito, (iii) em casos de desastre, (iv) para prestar socorro e (v) durante o dia, por determinação judicial.
Em relação à prisão em flagrante, durante muito tempo se entendeu que o simples fato de estarmos diante de um crime permanente sendo cometido em domicílio conduziria à legitimidade de eventual invasão domiciliar, a partir de uma interpretação literal da CF/88.
Contudo, tal cenário fora alterado sintomaticamente de forma mais recente, quando da definição do TEMA 280 em Repercussão Geral pelo Supremo Tribunal Federal. Ali, o pleno da Corte adotou a orientação segundo a qual “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”[1].
Revisado esse tema, retomemos ao objeto fulcral do presente artigo. No caso analisado em outubro de 2022 pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, os policiais responsáveis pela investigação afirmaram que o réu autorizou o ingresso na sua residência e o acesso ao seu celular, o que foi filmado pelos agentes de segurança – prática alinhada à diretriz estabelecida por esta Corte no julgamento do HC n. 598.051/SP – e confirmado pelo acusado em depoimento prestado perante a autoridade policial.
Importante salientar que o STJ tem afirmado que o consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação. Ademais, a prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Segundo a Corte:
(…) 7. São frequentes e notórias as notícias de abusos cometidos em operações e diligências policiais, quer em abordagens individuais, quer em intervenções realizadas em comunidades dos grandes centros urbanos. É, portanto, ingenuidade, academicismo e desconexão com a realidade conferir, em tais situações, valor absoluto ao depoimento daqueles que são, precisamente, os apontados responsáveis pelos atos abusivos. E, em um país conhecido por suas práticas autoritárias – não apenas históricas, mas atuais -, a aceitação desse comportamento compromete a necessária aquisição de uma cultura democrática de respeito aos direitos fundamentais de todos, independentemente de posição social, condição financeira, profissão, local da moradia, cor da pele ou raça. 7.1. Ante a ausência de normatização que oriente e regule o ingresso em domicílio alheio, nas hipóteses excepcionais previstas no Texto Maior, há de se aceitar com muita reserva a usual afirmação – como ocorreu no caso ora em julgamento – de que o morador anuiu livremente ao ingresso dos policiais para a busca domiciliar, máxime quando a diligência não é acompanhada de documentação que a imunize contra suspeitas e dúvidas sobre sua legalidade. 7.2. Por isso, avulta de importância que, além da documentação escrita da diligência policial (relatório circunstanciado), seja ela totalmente registrada em vídeo e áudio, de maneira a não deixar dúvidas quanto à legalidade da ação estatal como um todo e, particularmente, quanto ao livre consentimento do morador para o ingresso domiciliar. Semelhante providência resultará na diminuição da criminalidade em geral – pela maior eficácia probatória, bem como pela intimidação a abusos, de um lado, e falsas acusações contra policiais, por outro – e permitirá avaliar se houve, efetivamente, justa causa para o ingresso e, quando indicado ter havido consentimento do morador, se foi ele livremente prestado[2].
Diante disso, no caso apreciado pelo colegiado do STJ, tínhamos situação em que o imputado autorizara efetivamente o ingresso dos agentes de segurança pública em sua residência, bem como franqueando-lhes, voluntariamente, o acesso ao seu celular, tudo isso tendo sido registrado e filmado por câmeras, demonstrando respeito e cumprimento às diretrizes firmadas no retromencionado HC n. 598.051/SP, além de ter sido confirmado também pelo próprio investigado, perante autoridade policial (depoimento).
Assim, não se constatou ilegalidade patente a justificar o excepcional e prematuro trancamento do processo, sem prejuízo de discussão mais aprofundada sobre a dinâmica fática e a validade do consentimento na fase instrutória e na sentença, não havendo indicativos de ilegalidade na conduta investigativa[3].
Por fim, vale salientar que a medida de trancamento de investigações, apesar de possível, deve ser compreendida como em grau de excepcionalidade. Somente é cabível o trancamento da persecução penal por meio do habeas corpus quando houver comprovação, de plano, da ausência de justa causa, seja em razão da atipicidade da conduta praticada pelo acusado, seja pela ausência de indícios de autoria e materialidade delitiva, ou, ainda, pela incidência de causa de extinção da punibilidade[4]“.
Espero que tenham gostado e, sobretudo, compreendido!
Vamos em frente!
Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.
[1] RE n. 603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010). No mesmo sentido, no STJ: REsp n. 1.574.681/RS.
[2] HC n. 598.051/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 2/3/2021, DJe de 15/3/2021.
[3] HC n. 760.900/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 11/10/2022, DJe de 17/10/2022.
[4] AgRg no RHC n. 157.728/PR, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª T., DJe 15/2/2022.
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