Em 22 de agosto de 1943, o barco pesqueiro Changri-lá naufragou na Região dos Lagos, Estado do Rio de Janeiro, causando a morte de dez pescadores, cujos corpos nunca foram encontrados. Quase sessenta anos depois, em 2001, descobriu-se que a embarcação fora afundada a tiros de canhão por um submarino alemão, que fazia operações no litoral brasileiro durante a Segunda Guerra Mundial.
Os familiares das vítimas então começaram a ajuizar ações na Justiça Federal do Rio de Janeiro contra a República Federal da Alemanha, buscando indenização pela perda dos seus parentes. As ações foram propostas na Justiça Federal porque a Constituição prevê a competência dos juízes federais para processar e julgar as causas entre Estado estrangeiro e pessoa domiciliada ou residente no Brasil (art. 109, II), a não ser que a causa seja trabalhista (art. 114, I). Nessas causas, os recursos das decisões dos juízes federais são julgados diretamente pelo Superior Tribunal de Justiça, e não pelo Tribunal Regional Federal, como ocorre normalmente (art. 105, II, c, da Constituição).
O caso envolveu um dos pontos mais importantes do direito internacional: a imunidade dos Estados em relação à jurisdição de outros Estados. Há uma antiga norma internacional costumeira (que hoje está prevista em tratados) segundo a qual “par in parem non habet iudicium” (entre iguais não há jurisdição), ou seja, Estados soberanos não podem ser julgados ou ter seus bens penhorados na justiça de outro Estado.
Com o tempo, percebeu-se que os Estados não praticam somente atos de soberania, mas também realizam atos semelhantes aos das pessoas naturais, como a celebração de contratos privados. Essa percepção deu origem à distinção entre atos de império e atos de gestão, o que levou à consolidação do entendimento de que, em relação a estes (atos de gestão), os Estados não deveriam ter imunidade de jurisdição.
O Supremo Tribunal Federal adotou essa posição em 1989, no julgamento da ACi 9696. O principal exemplo de ato de gestão em nossa jurisprudência é a contratação de empregados pelas embaixadas estrangeiras. Quando estas não cumprem suas obrigações trabalhistas, os respectivos Estados podem ser condenados pela Justiça do Trabalho.
Vale ressaltar que, mesmo em relação aos atos de gestão, os Estados estrangeiros não podem ter os seus bens penhorados pela Justiça brasileira. Em outras palavras, embora não haja imunidade de jurisdição quanto aos atos de gestão, há imunidade de execução. Esse é o entendimento do STF, conforme se vê no ARE 1292062 AgR, Primeira Turma, Min. Dias Toffoli, Julgamento: 08/06/2021, Publicação: 09/08/2021 (“relativamente aos processos de execução, se impõe a imunidade absoluta dos Estados estrangeiros em relação à jurisdição brasileira, (…) salvo na hipótese de renúncia expressa”).
Diante desse cenário jurídico, ao analisar o caso Changri-lá, ambas as Turmas da Segunda Seção do STJ entenderam que estavam diante de um típico ato de império e que, como a República Federal da Alemanha não renunciou a sua imunidade, a questão não poderia ser julgada pela Justiça brasileira (AgRg no RO 68/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, julgado em 09/12/2015, DJe 19/02/2016).
Entendimento diverso teve a Justiça italiana, que afastou a imunidade da Alemanha em relação aos danos causados pelo exército nazista no final da Segunda Guerra em território italiano, sob o argumento de que a imunidade não pode ser invocada diante de graves violações dos direitos humanos.
Insatisfeita por ter sido julgada e condenada pela Justiça italiana, a Alemanha levou o caso à Corte Internacional de Justiça, que, entre outros fundamentos, decidiu que a imunidade estatal por atos de império não pode ser afastada nem mesmo em situações de graves violações dos direitos humanos (Caso das Imunidades Jurisdicionais dos Estados – Alemanha vs. Itália, Grécia intervindo, sentença de 3 de fevereiro de 2012).
Foi essa questão que chegou ao STF por meio do ARE 954858, de relatoria do Min. Edson Fachin. No dia 23 de agosto de 2021, o STF, por maioria, observou a tendência das cortes constitucionais do mundo inteiro a relativizar a imunidade de jurisdição diante da prática de crimes contra a humanidade. A Corte, assim, adotou a seguinte tese: “os atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição”.
A consequência desse julgamento vinculante do STF é que os familiares das vítimas poderão demandar a República Federal da Alemanha, mesmo contra sua vontade, e a Justiça Federal poderá condenar o Estado alemão ao pagamento de indenização pelos danos causados. Ainda não está certo se, em caso de não pagamento de eventual condenação, os bens da Alemanha poderão ser penhorados, pois a tese apenas fala sobre imunidade de jurisdição, e não de execução. De toda sorte, esse tema será cobrado nas próximas provas, e é importante que você esteja por dentro.
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