O Advogado e o Código de Ética Profissional

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PadraoA caminho do novo século inúmeros são os desafios éticos com os quais nos defrontamos e freqüentemente ficamos indecisos sobre qual a trilha adequada a seguir. Nem sempre estão iluminados os sinais e os marcos deixados por companheiros de jornada que nos precederam, em um caminho que sempre se bifurca em outro, que obstinadamente se bifurca em outro[2].
Em pleno século cuja história já começou (na lição de HOBSBAWN[3]), o andarilho volta-se para sua sombra e responde à interrogação da senhora da fortuna : – “Quem vem lá, além do mau tempo?”. – “Alguém semelhante ao mau tempo: pleno de inquietações”[4]!
Duvido do acerto do convite que me fez o advogado Sérgio Novais para estar aqui, nessa posição privilegiada daquele que fala porque supostamente sabe; creio, no entanto, que aquele que não sabe pode legitimamente partilhar com outros andarilhos as inquietações que o assombram.
Isso porque cumprir determinação emanada da OAB é dever disciplinar do advogado; expressar opinião pessoal em tema de interesse de todos é obrigação dos espíritos livres; sentar ao lado de Marília Muricy e Francisco Peçanha Martins, aos quais posso chamar de mestres, é título que não se afasta; colaborar nas justas homenagens aos advogados Barachísio dos Santos Lisboa e Álvaro Peçanha Martins é imperativo categórico de natureza ética que não se questiona.
Sem superar a dúvida que me assola, especialmente porque não sou moralista e deles prefiro distância, não estou aqui para fazer proselitismo em favor de uma moralidade positivada,- até porque não acredito possa a mão do estado tocar a fonte da ética profissional -, estou aqui para defender que deveríamos iluminar ao menos duas placas de sinalização para a escolha do caminho nas bifurcações de nossa jornada:

  1. A primeira – o Código de Ética e Disciplina da OAB é causa da unidade dos advogados;

 

  1. A segunda – nosso Código de Honra pode ser instrumento de uma resistência subversiva.

Indagar é sempre um bom começo: o que nos faz advogados? Ou, usando um conceito que aprendi, pela primeira vez, nas aulas de Introdução ao Estudo do Direito, na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, na década de 80: qual é a nossa qüididade?
Responde-nos de maneira formalmente satisfatória a Lei nº8.906, de 4 de julho de 1994 – o exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (caput,3ºEOAB). Advogados são os inscritos na OAB que exercem a advocacia.
É ainda aquela Lei que define advocacia: I – a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais; e II – as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas (I-II,1ºEOAB).
O advogado é, portanto, o inscrito na OAB que postula em juízo ou exerce consultoria, assessoria e direção jurídicas.
Aquilo que diferencia o advogado dos demais trabalhadores das carreiras jurídicas, a nossa qüididade, é a inscrição no órgão corporativo, aspecto formal, e o exercício de atividades privativas que constituem a advocacia, aspecto material.
Mas isso não nos dá unidade. A meu ver o que unifica todos os advogados, para além de suas diferenças de idade, saúde, sexo, cor, etnia, ideologia, riqueza, religião ou classe; aquilo que aproxima o advogado que fatura 1 milhão de reais por ano, daquele que recebe o salário mínimo profissional, o advogado que é militante da defesa de homossexuais, negros, índios, deficientes, idosos e outras minorias do advogado que defende grupos excludentes, o advogado que preserva o meio ambiente daquele que defende os madeireiros, o advogado que assessora comissões parlamentares de inquérito contra o narcotráfico ou pela cassação de prefeitos corruptos do advogado que empresta sustentação jurídica aos corruptos e aos narcotraficantes, o advogado que demanda direitos de mulheres e filhos contra os que lhes devem alimentos do advogado que ampara a pretensão dos devedores (em regra pais desprezíveis), o advogado que ataca líderes religiosos intransigentes daquele que os defende, o advogado que avoca a si a postulação de interesses políticos de partidos de esquerda daquele que advoga para partidos de direita, o advogado da Capital do advogado do interior, o advogado doutor do advogado bacharel, o advogado patrão do advogado empregado, o advogado que em nossas eleições vota na urna nº 1, daquele que está no fim da fila, enfim o que fornece unidade a um grupo tão heterogêneo, com interesses tão díspares, não é o exercício da advocacia, tout court, mas o modo como a advocacia é praticada, submetida a contornos e limites definidos em um Código de Ética e Disciplina Profissional, que prefiro chamar de Código de Honra.
Se a identidade dos inscritos na OAB que se denominam advogados resulta do exercício da advocacia, é a definição de regras para essa prática que lhes dá unidade, e, em última análise, afeta sua própria identidade.
Advogado não é apenas o inscrito na OAB; advogado não é somente o que porta um carteira vermelha lustrosa com um brasão da república; advogado não é unicamente o que usa o nome de advogado. “A natureza das coisas ama esconder-se”, nos ensina o velho Heráclito de Éfeso – “physis cryptesthai philei[5]”. A inscrição, a carteira e a denominação de advogado não passam de máscaras que, à semelhança da persona, engendram personagens sociais que podem ou não seguir o script.
O que faz de um advogado advogado não são as múltiplas máscaras de que pode lançar mão para aparecer em público, mas o cumprimento fiel do roteiro social que lhe cabe, submetido a um rigoroso script definido em seu Código de Honra, que tenta superar as profundas diferenças pessoais, sociais, políticas e religiosas dos advogados concretos.
Nós somos o que somos não porque advogamos; mas porque advogamos como advogamos!
Eis aí nosso Rio São Francisco – escondida sob tantas máscaras que nos impõem os que deslustram a advocacia, nossa unidade nacional decorre de nossa honra.
Advogado é o que faz do seu juramento razão e limite para sua prática advocatícia.
E a honra do advogado só a ele pertence.
Nem aos juizes, nem aos promotores, nem a delegados ou serventuários, nem a clientes, partes ou peritos, nem aos que pensam que são deuses ou senhores dos deuses, a nenhum deles nossa honra se aplica. Deles não se espere nenhuma conduta ditada por nossa moralidade profissional, porque a nenhum dos demais trabalhadores do direito aplica-se nosso Código de Honra.
Conhecê-lo, portanto, não é mero diletantismo filosófico, mas necessidade ditada por uma razão prática.
Ocorre, porém, que um Código de Honra que não se pratica é útil apenas para criar novamente máscaras que falseiam aquilo que somos ou aquilo que queremos ser. Inútil, nosso Código de Honra deixará de ser nosso fator de unidade e nós passaremos a ser o que são tantos outros grupos sociais – espectros de si mesmos!
Fantasmas não trilham caminhos de construção da humanidade, agrilhoados a vidas que já se foram.
Os homens são vocacionados para o futuro, os fantasmas para o passado.
Nós, advogados, estamos compromissados com o futuro que haveremos de construir; os advogados-fantasmas estão acorrentados a um passado que queremos todos enterrar para que descanse em paz.
Mas não há paz, sem conflito. A natureza conflituosa da existência humana produz movimento, sem o qual nada é. Deixemos de lado a ilusão do fim dos conflitos. “Tudo é guerra”, repete-nos “O Obscuro”.
O século XX é testemunha dessa triste realidade. Mas foi no século XX que, também, se construíram, vez primeira na história, políticas pacifistas. Ghandi, o advogado da não-violência, destronou um império, recusando-se a violentar o outro. Ele nos ensinou que também nós não podemos admitir sermos pelos outros violentados; e que, para reagir a monstros, monstros não precisamos nos tornar. Não se combate o horror com mais horror.
Já tive a oportunidade de vos dizer: “não existem calmos caminhos para as índias – a trilha da liberdade construímo-la a cada dia, quase sempre açoitados por fortes ventos e bárbaras tempestades, sem mapas, sem bússolas, sem estrelas. A geografia dos valores não se acerca de instrumentos tão fáceis[6]”.
Essa geografia é complexa.
A advocacia nos impõe o dever de advogarmos com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé, que, em síntese precária, exige que o advogado seja simplesmente honrado. Daí porque está proibido de emprestar seu concurso aos que atentem contra a ética, a moral, a honestidade e a dignidade da pessoa humana.
Ao mesmo tempo, o advogado é obrigado a aplicar toda sua diligência habitual no exercício da advocacia, podendo ser responsabilizado por qualquer prejuízo que cause por culpa sua (1.300CC).
Quantas e quantas vezes, em nosso cotidiano, deparamo-nos com situações paradoxais: ou aceitamos propostas imorais ou não teremos a garantia do direito de nosso cliente.
Foi assim em episódio que me relatou o ilustre advogado Dalzimar Tupinambá: ação trabalhista em curso, comparece ao escritório do advogado do reclamante o advogado da empresa reclamada, vindo de São Paulo para a reunião, e faz a seguinte proposta: os direitos do reclamante somam 48 mil reais; apesar disso, o acordo será firmado em 60 mil, devendo o reclamante entregar ao advogado da reclamada 10 mil reais, sem o conhecimento da empresa.
Recusando-se a assinar o acordo, o advogado prejudicará o cliente, que deixará de receber tudo o que tem direito – 48 mil reais – acrescido de mais 2 mil; se assinar a transação, o advogado estará descumprindo diversas normas do Código de Honra e poderá, quiçá, ser punido.
Que fazer?
Ofereço-lhes minha solução. Amigo Dalzimar, esse é um falso dilema!
Não há dilema ético, porque a diligência habitual do advogado no exercício da representação dos direitos e interesses de seu cliente está limitada pela ética profissional, e, portanto, não descumpre seus deveres face ao cliente o advogado que se recusa a agir sem honra. O advogado deve empenhar-se na defesa das causas confiadas ao seu patrocínio, dando ao constituinte o amparo do Direito, e proporcionando-lhe a realização prática de seus legítimos interesses[7].
Não é legítimo o conluio com o canalha do advogado paulista para lesar a empresa reclamada, por menos respeitável tenha sido a conduta daquela, enquanto empregadora.
A resposta é, portanto, simples. A única saída possível é tornar pública a intenção de pagar ao advogado da empresa aquilo que solicitou a título de honorários advocatícios, que eu sei não existe ex lege na Justiça do Trabalho, mas pode resultar ex voluntatis. Concordando a reclamada, não há qualquer deslize ético no pagamento do advogado paulista; se a empresa recusar, o acordo não pode ser firmado nos termos propostos pelo advogado de São Paulo. O cliente não será prejudicado, pois se são seus os direitos provisoriamente reconhecidos nas tratativas, a via judicial, mesmo que mais longa, haverá de certificá-los, em um primeiro momento, e convertê-los em vantagem patrimonial, em fase de execução.
A ética nem sempre é boa conselheira, quando se quer ganhar tempo!
Apesar de falso, aquele dilema surge cotidianamente, travestido sob outras roupagens, em nossa prática advocatícia.
Monstros nos querem transformar em monstros! Fantasmas presos à desonra também nos querem desonrar!
Fausto já advertiu o mundo – ninguém a alma vende a Mefistófeles impunemente!
Diabólico tem a mesma raiz de diáspora – diabólico é tudo que separa; simbólico, ao contrário, tudo que aproxima[8].
Diabólicas são as mil faces e uma dos que nos querem afastar de nosso caminho em busca de advocacia ética.
Precisamos transformar nosso Código de Honra em um simbólico instrumento de resistência. Precisamos estar juntos. Essa não é uma batalha individual de cada um consigo mesmo. Essa ou é uma guerra de todos, ou já fomos derrotados por nós mesmos.
Moralidade é campo de valores que resulta da história, não da natureza ou do transcendental. Por isso mesmo contigente, no tempo e no espaço, e resultante de um agir social.
Em um mundo com tamanha divergência de culturas, são diversas as moralidades ocorrentes.
O Brasil não existe fora do mundo. Aqui também o conflito se instaura entre moralidades distintas.
Sustento que nosso Código de Honra pode servir de instrumento de resistência subversiva porque ele é extemporâneo.
Mesmo considerando que são múltiplas as moralidades em confronto no mundo e no Brasil, é preciso reconhecer que nosso tempo está marcado pela moralidade decorrente do neoliberalismo, assim descrita por Pierre Bourdieu: “darwinismo moral que, com o culto do vencedor (“winner”), formado em matemáticas superiores e nos “chutes” sem rigor, instaura a luta de todos contra todos e o cinismo como norma de todas as práticas. E a nova ordem moral, fundada na inversão de todas as tábuas de valores, se afirma no espetáculo, prazerosamente difundido pela mídia, de todos esses importantes representantes do Estado, que rebaixam a sua dignidade estatutária ao multiplicar as reverências diante dos patrões de multinacionais, Daewoo ou Toyota, ou ao competir com sorrisos e acenos coniventes diante de Bill Gates”[9].
Se substituirmos a Daewoo ou a Toyota pela Nike, que comprou a vontade da seleção brasileira de futebol, estaremos mais próximos do Brasil! Até “o futebol está sujo”[10].
É esse o nosso mundo: a luta de todos contra todos e o cinismo como norma de todas as práticas; a busca de interesses egoístas e a paixão individual do lucro.
Nesse contexto, a utopia neoliberal invoca a necessidade de destruição de todos os coletivos. O estado, as igrejas, os sindicatos, a família, as ong’s, as associações, as OABB. O indivíduo é a medida de todas as coisas, qualificado de consumidor. A solidão individual fragiliza o ser humano que é presa fácil e não incomoda, e ainda nega a ontologia humana que é política[11].
O Código de Honra dos advogado é inatual porque, situado para além de seu tempo, não está lastreado na busca de interesses egoístas ou na paixão individual do lucro, e nem pretende regular a luta de todos contra todos e o cinismo como norma de todas as práticas. Ao contrário, contra a corrente (para usar uma expressão de Carlos Nelson Coutinho[12], que admito não vai ficar satisfeito, em se tratando de análise de um estatuto burguês), nosso Código enlaça-se com outros valores:
a) o interesse público é superior aos interesses egoístas – no seu ministério privado o advogado presta serviço público e exerce função social, seus atos constituem múnus público e sua atividade subordina-se à elevada função pública que exerce (§1º, §2º, 2ºEOAB e 2ºCEDOAB);
b) a advocacia está comprometida com instituições coletivas – o advogado é defensor do estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, cabendo-lhe pugnar pela solução dos problemas da cidadania e pela efetivação dos seus direitos individuais, coletivos e difusos, no âmbito da comunidade (IX, e caput,2ºCEDOAB);
c) a paixão individual pelo lucro foi banida da advocacia, cujo exercício é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização (5ºCEDOAB);
d) pressupondo o embate dos contrários e sem pretender eliminá-lo, nosso Código não se compraz com a luta de todos contra todos, impondo ao advogado o dever de atuar com lealdade e de estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios (II, 2ºCEDOAB e VI, 2ºEOAB);
e) finalmente, nossa moralidade afasta o cinismo ao exigir do advogado lealdade, boa-fé, honradez, nobreza e dignidade no exercício da profissão (II, 2ºCEDOAB).
A corrente nos arrasta para o abismo; atuar contra a corrente é questão de sobrevivência!
Cumprir nosso Código de Honra, ser honrado, importa, portanto, para o advogado ser inatual, extemporâneo, anacrônico, porque condenado a ser livre para aplicar valores que não são os que estão se impondo a partir da utopia neoliberal, que, paradoxalmente, questiona nossa própria liberdade.
O pior é que ela se instalou como uma peste – permitam-me abusar da metáfora camusiana[13]. Invadiu nosso lares, nossas empresas, nossos clubes, nossas associações de classe, ela dominou nossos corações e nosso imaginário sem que tenhamos percebido – pouco a pouco, paulatinamente, sorrateiramente. No começo, nada dissemos; depois concordamos; e, agora, quando o desemprego cresce a cada dia – 44 milhões de pessoas sobrevivem com menos de 2 reais por dia[14]; quando as empresas nacionais estão fechando; quando o patrimônio público foi vendido por dois tostões – na Inglaterra a British Energy foi privatizada por 2,7 bilhões de dólares, tendo em seu patrimônio oito usinas, entre as quais a Sizewell B, recentemente concluída por 5,6 bilhões de dólares[15]; quando a res publica está sendo desmantelada – “os ditames da ética republicana por transparência na gestão pública e por punição de corruptos e corruptores serão letra morta se restritos ao texto legal ou à discurseira política”[16]; quando temos a impressão que o estado brasileiro é uma grande baleia que encalhou e está sendo retalhada, ainda viva – cada um querendo tirar o maior bocado; quando lobby passou a ser contrário de lobby[17], afirmamos que era inexorável, fruto da globalização. No futuro, quando os filhos dos brasileiros já não tiverem empregos para sustentar suas famílias, porque os postos dignos serão extintos pela tecnologia e os que sobrarem ocupados pelos empregados vindos da sede das empresas globais, quando já não tivermos água para beber, porque 1/3 da água potável do mundo for alienada, quando nossa moeda for o dólar de fato e de direito, quando nossa língua não for mais o português, quando deixarmos escapar o controle de todas as atividades essenciais para a proteção de nossas vidas, quando a nação já não mais tiver forças para identificar-se consigo mesma, vamos olhar para trás e lamentar não termos combatido a peste com todas as nossas energias.
Não sou pessimista, no entanto. Penso que ainda é tempo de vacinação. Lanço mão do verso do poeta Viana, que é Hebert e não é meu parente: – “Há uma luz no túnel dos desesperados; há um cais de porto pra quem tem que chegar[18]”.
Nosso Código de Honra pode ser instrumento de resistência subversiva, pois conspira contra essa lógica da destruição de valores extemporâneos. Há uma luz no túnel dos desesperados. O advogado Roberto Prates Maia não se cansa de apontar minha angústia. Meu desespero, Roberto, não me imobiliza. Minha angústia se torna revolta e tento fazê-la ação.
É preciso dizer NÃO aos que nos cortejam com diabólicas estratégias para nos convencer a vendermos nossa alma a Mefisto.
Não prego uma xenofobia ridícula. O capital estrangeiro é bem vindo, mas para gerar empregos e cumprir a função social que a Constituição Federal impõe à propriedade, e não para destruir as empresas nacionais, alienar o bem estar dos brasileiros e corromper a nação!
A concorrência estimula a criatividade e os avanços tecnológicos. Mas não é justo colocar na mesma arena o empresário brasileiro, que capta dinheiro a 10, 15, 20, 25% de juros ao mês, para competir com os que, lá fora, captam-no a 1, 2, 3% ao ano. Precisamos é de mercado competitivo, não um massacre! Ao contrário do que dizem, temos pouco mercado no país – aqui sobram monopólios, oligopólios e cartéis. Mas o mercado não pode ser fonte de todas as regras, especialmente aquelas que devem reger as coisas públicas, que exigem uma ética diferenciada.
Por isso é preciso dizer não à tentativa de submeter a advocacia à lógica neoliberal.
Mas esse NÃO, para deixar de ser ingênuo, há que ser de todos e não um ato de heróica estupidez individual.
Os caminhos a percorrer, as rotas a seguir na bifurcação da bifurcação da bifurcação serão o resultado de escolhas difíceis marcadas pelo conflito.
No mundo da globalização ainda há enfrentamentos, porque nem só a economia engendra valores. Os verdes nos apontam uma ética ecológica voltada para o respeito à Mãe-Terra e a todos os seres viventes e não-viventes[19]; os religiosos nos indicam uma nova espiritualidade mais alicerçada no homem que nos espíritos[20]; o Papa João Paulo II sugere o perdão da dívida externa e confirma uma tradição católica contra a usura[21]; os holistas nos indicam novas formas de entender o todo[22]; grupos indígenas diversos nos ensinam harmonia com interdependência[23]; 32 cidades italianas que compõem o CITTASLOW mostram que é possível preservar o modo de vida tranqüilo de seus cidadãos[24], os democratas recusam-se a sentar-se à mesa de negociação com todas as Chinas que insistem em sufocar todos os Tibets. É uma vergonha que a ONU para bajular os chineses tenha se recusado a convidar o Dalai Lama para o Conferência Mundial do Milênio pela Paz dos Lideres Religiosos e Espirituais, que se realizará em Nova York nos próximos dias 28 a 31 de agosto.
Estou ao lado dos que pensam que a globalização da economia deve vir acompanhada de uma responsabilidade também global. Leonardo Boff denomina-a Justiça Ecológica – “o ser humano tem uma dívida de justiça para com a Terra”[25]. O século XX nos legou a todos a construção da maior pauta de valores jamais escrita pela humanidade. Os direitos humanos deveriam ser a fonte comum de todas as moralidades, coloridos pelos valores ecológicos, exigindo dos hermeneutas coragem para romper com paradigmas jurídicos que já não atendem às novas demandas.
A nova ordem mundial decorrente da globalização impõe uma nova teoria das responsabilidades jurídicas, resultante de uma nova moralidade. Se nada no mundo decorre da vontade de um só, todos são responsáveis por tudo. Não há mais lugar para omissões irresponsáveis. Quem mais lucra, deve ser mais responsável. É tempo de abandonar a culpa subjetiva, definitivamente. Um conflito bélico, onde quer que ocorra, deveria gerar a responsabilidade de todos os países que não foram capazes de impedi-lo e de todas as empresas que produziram os artefatos destruidores. A morte de um ser humano por arma de fogo deveria encadear a responsabilidade de quem atirou, de quem vendeu a arma, de quem a fabricou, de quem a licenciou e de quem a financiou. A reparação do meio ambiente degradado deveria ser das empresas infratoras e das demais que consomem os insumos poluentes, tenham ou não contribuído diretamente para a degradação.
Economia globalizada deveria importar em responsabilidades compartilhadas – essa a ética global pela qual devemos lutar. Aqueles, alguns aspectos que nosso Código de Honra precisa incorporar.
Em nosso país, no campo jurídico, vejo com clareza vários confrontos com avanços e recuos. No direito público, por exemplo, a destruição da democracia social sonhada pelo Constituinte de 1988 através de emendas constitucionais paga o preço na consolidação da democracia política. Mas essa contradição gera disputa entre forças antagônicas. Quanto mais espaços políticos forem criados, com eleições periódicas, voto universal e secreto, instituições fiscalizadoras – como o ministério público federal e a imprensa livre, que não podem ser amordaçados em nome de uma estabilidade cínica – aliás, o próprio Presidente da República disse publicamente que não é favorável a esconder, abafar[26] -, quanto melhores forem as informações sobre a existência de locus políticos, maiores serão as mobilizações dos sujeitos sociais interessados em combater o aniquilamento de direitos sociais e econômicos; quanto menos direitos sociais e econômicos forem garantidos, maiores serão as demandas potencialmente conflituosas.
No direito privado, do mesmo modo. Estamos às vésperas de um novo Código Civil elaborado para reger o século que já acabou, não para o século que mal começou. E com todas as vênias ao ilustre Senador Josaphat Marinho, que se desincumbiu com louvor de seu mister de relator do Projeto no Senado, o resultado é um Livro do Direito de Família que é um retrocesso e um escândalo! O desmantelamento dos direitos conquistados por companheiros e companheiras vai produzir enormes divergências, em todo o território nacional. No lugar de estabilizar a família, vai ser agente de instabilidade conflituosa. O Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFam tem feito críticas severas ao Projeto em curso.
E se há muito ainda a ser feito, é preciso reconhecer grandes conquistas de todos nós: desde 5 de outubro de 1988, um Presidente da República foi afastado, 22 deputados federais e 1 senador cassados por falta de decoro parlamentar, no Rio Grande do Sul, apenas em 6 anos, mais de 300 prefeitos foram processados por atos de improbidade administrativa, o Prefeito de São Paulo foi afastado e depois retornou, o Prefeito de Londrina não retornou. Concordo com o advogado João Mestieri que disse, ontem, que “a corrupção e os privilégios diminuíram. Isso se deve, entre outros fatores, a uma entrada maciça de mulheres na magistratura, no ministério público e na polícia. Elas estão dando um novo perfil ao serviço público brasileiro[27]”. Acrescento: as advogadas estão dando uma nova cara à OAB da Bahia. Apesar de tudo isso, as instituições democráticas continuam funcionando normalmente.
A constitucionalização da união estável e do divórcio, por seu lado, ao contrário do que disseram os arautos do apocalipse da família, colocou o amor no centro das questões familiares.
A democracia política parece ter fincado raízes firmes e seguras; é tempo de regar a democracia social, que deveria resultar da ética global que é causa e conseqüência da declaração universal dos direitos do homem.
É verdade que nem tudo são flores, pra não dizer que delas não lembrei. A recente anistia aprovada pelo Congresso Nacional de todos os débitos decorrentes de multas aplicadas pela Justiça Eleitoral, por exemplo, além de inconstitucional, demonstra que o jardim está florido, mas há sempre os que pisam na grama e destroem as flores. Não obstante, o andarilho que quiser ver com olhos de enxergar, através das brumas haverá de encontrar ao seu lado muitos outros trilhando o mesmo caminho.
Inclusive aqui. “O Brasil é um país especial, onde prostituta se apaixona, cafetão sente ciúme e deserto tem água”[28]. Em nossa terra o sentimento alcança os valores e faz brotar a verde luz da esperança, que reluz em cada Esmeralda que nos ampara. A alegria de construir o mundo é parte constitutiva na brasilidade dos que vivem de seu trabalho. Creio que podemos repetir com o Camus da fase de Argel que: se a miséria indica que nem tudo vai bem sob a história, o sol nos mostra que nem tudo é a história[29].
O sol do Brasil nos incita a uma afirmação “joyeuse” de valores que compõem uma ética sócioambiental.
Na difícil tarefa de percorrer o caminho que nos conclama a ética temos em nosso Código de Honra não apenas uma bandeira, mas uma trilha encandescente que nos pode servir, a um só tempo, de lanterna para os desesperados e limite para os revoltados. E, ainda, pode ser pauta para uma criativa reação que encontre na força da alegria e da tristeza do povo motivo e sustentação para a advocacia.
Nossa jornada, dessa maneira, haverá de ser balizada pelas marcas que nos deixaram homens e mulheres que fizeram de seu ofício uma realização de valores superiores, como os advogados Barachisio Lisboa ou Peçanha Martins, sujeitos de nossas homenagens.
Faço votos que sejamos capazes de escolher com prudência a via correta quando da bifurcação das bifurcações a caminho do novo século! Nosso Código de Honra poderá nos servir como elemento de unidade e instrumento de resistência. O mau tempo gera inquietações, mas é preciso continuar, apesar do mau tempo. Assim, quem sabe, manteremos a construção da trajetória da qual não nos envergonhamos e tenhamos coragem de repetir orgulhosos que não temos medo do eterno retorno[30]: nós somos aquilo que queremos ser – ADVOGADOS!

˜

[1] Palestra proferida no dia 14 de agosto de 2000, no Othon Palace Hotel, em Salvador(Ba), no Seminário Advocacia a Caminho do Novo Século, promovido pela OAB/Bahia em homenagem à memória dos advogados Barachisio Lisboa e Álvaro Peçanha Martins
[2] BORGES, Jorge Luís. “Labirinto”, In: Elogio da Sombra. Porto Alegre, Globo, 1977; “O jardim dos caminhos que se bifurcam”, In: Ficções. RJ, Globo, 1986.
[3] HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: uma historia mundial – 1914-1991.
[4] SHAKESPEARE, Wiliam. O Rei Lear. Edição bilíngue, tradução Jorge Wanderley, RJ, Relume-Dumará, 1992.
[5] COLLI, Giorgio. Nature aime se cacher. Paris, Éditions de l’éclat, 1994.
[6] “Oração aos novos advogados”, In: Boletim Informativo da OAB/Ba, nº02 – Março/Maio de 2000. Discurso proferido na sede da OAB/Ba, em solenidade de entrega das carteiras de advogados e estagiários.
[7] Resolução de 13 de fevereiro de 1995 do Conselho Federal da OAB.
[8] SOUZA, Eudoro. Mitologia I Mistério e Surgimento do Mundo. 2ª ed., Brasília, UNB, 1995.
[9] BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invesão neoliberal. RJ, Zahar, 1998.
[10] FERNANDES, Bob. “O futebol está sujo”. In: matéria de capa de Carta Capital nº128, edição 2/8/00.
[11] ARISTÓTLES. Politica, apud STONE, I. F. O julgamento de Sócrates. SP, Companhia das Letras, 1988.
[12] COUTINHO, Carlos Nelson. Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. SP, Cortez, 2000.
[13] CAMUS, Albert. A peste. Lisboa, Livros do Brasil, [ ].
[14] MERCADANTE, Aloisio. “Ética e economia”, In: Folha de São Paulo, edição de 11/08/00.
[15] THOMAS, Steve e TOLMASQUIM, Mauricio Tiomno. “O futuro da energia nuclear”, In: Folha de São Paulo, edição de 07/08/00 – p. A3.
[16] ‘Ética e política”, editorial da Folha de São Paulo, na edição de 13/08/00 – p.A2.
[17] EDUARDO JORGE. Em depoimento na CPI do Judiciário, referindo-se à sua atividade.
[18]VIANA, Herbert. Letra da canção: “Lanterna dos afogados”.
[19] UNGER, Nancy Mangabeira. Fundamentos filosóficos do pensamento ecológico. SP, Loyola, 1992.
[20] DALAI LAMA. Uma ética para o novo milênio. RJ, sextante, 2000; BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 2ª ed., Petrópolis, Vozes, 1999.
[21] Papa João Paulo II. Carta Apostólica “Advento do Terceiro Milênio”. 1994.
[22] WEIL, Pierre. A mudança de sentido e o sentido da mudança. RJ, record/Rosa dos Ventos, 2000.
[23] FILHO, Carlos Frederico Marés de Souza. O renascer dos Povos indígenas para o direito. Curitiba, Juruá, 1998.
[24] WASSERMANN, Rogerio. “Contra estresse, Itália lança Cittaslow”, In: Folha de São Paulo, edição de 13/08/00 – p. A25.
[25] BOFF, Leonardo. Ética da vida. Brasília, Letraviva, 1999, p.84.
[26] SOUZA, Josias. “Escolha aqui o FHC de sua preferência”, In: Folha de São Paulo edição de 13/08/00 – A8.
[27] Entrevista na Folha de São Paulo de 13/08/00 – p.A12.
[28] VIGGIANI, Ed. “Dunas de Lençois abrigam fantasmas”, In: Folha de São Paulo, edição de 31/7/00, G2.
[29] CAMUS, Albert. O avesso e o direito. Lisboa, Livros do Brasil, [ ].
[30] MARTON, Scarlett. “O eterno retorno do mesmo: tese cosmológica ou imperativo ético”, In: Ética. SP, Companhia das Letras/ Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p.205.
Fonte: Unifacs.br
 

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O Gran Cursos Online desenvolveu o Projeto Exame de Ordem focado na aprovação dos bacharéis em Direito no Exame Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil. A renomada equipe de professores, formada por mestres, doutores, delegados, defensores públicos, promotores de justiça e especialistas em Direito, preparou um método online que dará o apoio necessário para o estudante se preparar e conseguir a aprovação. O curso proporciona ao candidato uma preparação efetiva por meio de videoaulas com abordagem teórica, confecção de peças jurídicas e resolução de questões subjetivas. É a oportunidade ideal para aqueles que buscam uma preparação completa e a tão sonhada carteira vermelha.

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