Reflexões sobre a obrigatoriedade da resposta à acusação no processo penal militar (Parte I)

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Cícero Robson Coimbra Neves1

Em 12 de dezembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal julgou o RHC n. 142.608, sob relatoria do Ministro Edson Fachin, tornando obrigatória no Processo Penal Militar a aplicação dos arts. 396 e 396-A do Código de Processo Penal comum, sedimentando-se a resposta à acusação. Vejamos a Ementa:

Recurso ordinário em habeas corpus. Crime de corrupção ativa militar (CPM, art. 309). Competência da Justiça Militar (CPM, art. 9º, inciso III, alínea a). Pretendida aplicação subsidiária dos arts. 396 e 396-A do Código de Processo Penal ao processo penal militar. Viabilidade jurídica do pedido. Precedentes. Resolução, nos termos da assentada do julgamento, do caso concreto: aplicação dos citados dispositivos do CPP ao processo militar, mantendo-se a decisão de recebimento da denúncia, porém anulando-se os atos processuais subsequentes e determinando-se ao Juízo Militar que oportunize ao recorrente a apresentação de resposta à acusação com fundamento nos mencionados preceitos processuais. Modulação, nos termos do voto médio, dos efeitos da decisão: a partir da publicação da ata de sessão deste julgamento, o rito dos arts. 396 e 396-A do Código de Processo Penal aplica-se aos processos penais militares cuja instrução não tenha se iniciado, ressalvada a hipótese em que a parte tenha requerido expressamente a concessão de oportunidade para apresentação de resposta à acusação no momento oportuno. Recurso parcialmente provido. 1. Paciente denunciado pela suposta prática do delito do art. 309, caput, do Código Penal Militar (corrupção ativa militar), “por ter oferecido vantagem indevida a Oficial do Exército para o fim de obter aprovação e registro de produtos produzidos por empresa de vidros blindados”. 2. A prática de atos funcionais ilícitos em âmbito militar afeta diretamente a ordem administrativa militar, pois, em alguma medida compromete o bom andamento dos respectivos trabalhos e enseja a incidência da norma especial, ainda que em desfavor de civil. 3. Competência da Justiça Militar em razão de suposta ofensa às instituições militares e às suas finalidades, à luz da regra prevista no art. 9º, inciso III, alínea a, do Código Penal Militar. 4. Viabilidade jurídica do pedido de aplicação subsidiária dos arts. 396 e 396-A do Código de Processo Penal ao processo penal militar. 5. O Tribunal Pleno, ao julgar o HC nº 127.900/AM, legitimou, nas ações penais em trâmite na Justiça Militar, a realização do interrogatório ao final da instrução criminal (CPP, art. 400 – redação da Lei nº 11.719/08), em detrimento do art. 302 do Decreto-Lei nº 1.002/69. 6. O escopo de se conferir maior efetividade aos preceitos constitucionais da Constituição, notadamente os do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV), cabe ser invocado como justificativa para a aplicação dos arts. 396 e 396-A do Código de Processo Penal ao processo penal militar, sendo certo, ademais, que, em detrimento do princípio da especialidade, o Supremo Tribunal Federal tem assentado a prevalência das normas contidas no CPP em feitos criminais de sua competência originária, os quais, como se sabe, são regidos pela Lei nº 8.038/90. 7. É certo, portanto, que apresentar resposta à acusação é uma prática benéfica à defesa, devendo prevalecer nas ações penais em trâmite perante a Justiça Militar, como corolário da máxima efetividade das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (CRFB, art. 5º, inciso LV) e do devido processo legal (art. 5º, incisos LV e LIV, da Constituição Federal). 8. Recurso provido parcialmente para i) reconhecer a competência da Justiça Militar; e ii) resolver o caso concreto no sentido de manter o recebimento da denúncia e anular os atos processuais subsequentes na Ação Penal Militar nº 35-85.2015.7.11.0211, para que se propicie ao recorrente a oportunidade de apresentar resposta à acusação, nos termos dos arts. 396 e 396-A do CPP. 9. Modulação da decisão, nos termos do voto médio, para que, a partir da publicação da ata deste julgamento, o rito dos arts. 396 e 396-A do Código de Processo Penal seja aplicado aos processos penais militares cuja instrução não tenha se iniciado, ressalvada a hipótese em que a parte tenha requerido expressamente a concessão de oportunidade para apresentação da resposta à acusação no momento oportuno.

Dessa forma, o juiz federal da Justiça Militar ou o juiz de Direito do Juízo Militar, se não rejeitar liminarmente a denúncia ou não determinar o retorno dos autos ao Ministério Público para complementação dessa peça, nos termos do polêmico § 1º do art. 78 do CPPM, a receberá e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 dias (art. 396 do CPP), momento em que o acusado poderá arguir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa (como opor as exceções), oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário (art. 396-A do CPP).

Anote-se, ainda, que se a citação se der por edital,  o prazo para a defesa começará a fluir a partir do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído (art. 396, p. u., do CPP). 

A decisão em comento, há que se destacar, traz reflexos muito além da simples dinâmica da resposta à acusação, influenciando em outros pontos do processo penal militar, portanto, deve ser estudada além do óbvio, ou seja, além do que ela diz diretamente ao ator do direito penal e do processo penal castrense, das quais destacaremos algumas em uma série de artigos.

Uma primeira discussão correlata à nova realidade está no marco interruptivo da prescrição da pretensão punitiva em função da instauração do processo, tema que outrora interessava apenas ao Direito Penal e ao processo penal comum, mas que agora é totalmente pertinente à persecução penal castrense.

No Código de Processo Penal comum, os art. 396 a 405 disciplinam os procedimentos ordinário (quando, nos termos do inciso I do § 1º do art. 394 do CPP, tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada for igual ou superior a quatro anos de pena privativa de liberdade) e sumário (quando, nos termos do inciso II do § 1º do art. 394 do CPP, tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada seja inferior a quatro anos de pena privativa de liberdade). O procedimento sumaríssimo, que não cabe à discussão neste momento, é regido pela Lei n. 9.099/95. 

Com o advento da Lei n. 11.719/2008, além do disposto no art. 3962, que menciona um recebimento da denúncia, também o fez o art. 3993, ambos do CPP, isso de forma conjunta e aparentemente conflitante, pois são grafados dois momentos de recebimento da denúncia, suscitando a dúvida sobre qual deles deve ser considerado para interromper o curso da prescrição da pretensão punitiva. Já nos debruçamos sobre a questão em outra ocasião4, mas também o fazemos aqui, por entender sua pertinência para um estudo integrado com o Código Penal Militar. 

A indagação é muito bem colocada por Rogério Greco:

As alterações no Código de Processo Penal levadas a efeito pela Lei n. 11.719, de 20 de junho de 2008, trouxeram alguns impasses. Isso porque, em duas passagens distintas, constantes dos arts. 396 e 399, fez-se menção ao recebimento da denúncia. Agora a pergunta que fazemos é a seguinte: Em qual dos momentos previstos no Código de Processo Penal poderá ser reconhecido o recebimento da denúncia para efeitos de interrupção da prescrição? Seria na primeira oportunidade em que o julgador tomasse conhecimento da denúncia ou queixa (art. 396, caput, do CPP), ou após a resposta do réu (art. 399 do CPP)? Essas respostas, como percebemos, são extremamente importantes, uma vez que, dependendo do caso concreto, poderá importar no reconhecimento ou não da prescrição5.

Em resposta a essa indagação, duas posições podem ser destacadas, obviamente, uma sustentando que a denúncia é recebida no momento do art. 396 do CPP, e a outra entendendo que o efetivo recebimento da denúncia deve ser o do art. 399 do CPP.

Na primeira vertente está, por exemplo, Nereu José Giacomolli, nos seguintes termos:

Da maneira como se estruturou a reforma, não há como ser sustentado ser o segundo momento o verdadeiro momento do recebimento da acusação. É o que se infere de uma leitura sistemática do art. 363 do CPP (processo penal se forma com a citação do acusado); do art. 366 do CPP (suspensão do processo após a citação por edital, quando o réu não comparecer nem constituir advogado) e do art. 397 do CPP (absolvição sumária). Todos esses atos processuais e decisões correm antes do recebimento da denúncia que está no art. 399 do CPP. Portanto, o momento do recebimento da acusação é o que se encontra previsto no art. 396 do CPP6.

Também nesse sentido posiciona-se Guilherme Nucci, aduzindo que o recebimento da denúncia se dá no primeiro momento, ou seja, no momento do art. 396 do CPP7.

Para o autor, no art. 399, é inegável o equívoco legislativo de redação na expressão “recebida a denúncia”, pois “…já fora realizada essa atividade por ocasião do disposto no art. 396, caput. Tanto que este artigo é bem claro, mencionando, até de maneira desnecessária, que a peça acusatória, se não for liminarmente rejeitada, será recebida, ocasião em que o magistrado ordenará a citação do réu para responder à acusação. Ademais, por uma questão de lógica, somente tem sentido falar-se em absolvição sumária, quando a relação processual se aperfeiçoou, ou seja, a peça acusatória foi recebida, o réu foi citado e ofereceu sua defesa. Se a defesa prevista no art. 396-A fosse mera defesa preliminar, a denúncia ou queixa não teria sido recebida, nem se falaria em absolvição sumária, mas em simples rejeição da peça acusatória, caso acolhidos os argumentos defensivos. Note-se o procedimento adotado na lei 11.343/06 (Drogas), como ilustração: oferecida a denúncia, o juiz ordenará a notificação do acusado para oferecer defesa prévia, por escrito, em dez dias. Na sua resposta, ele pode alegar toda a matéria defensiva possível (exatamente como previsto no art. 396-A do CPP). Se não forem consistentes os argumentos do acusado, o juiz recebe a denúncia e o processo prossegue com a designação de dia e hora para a audiência de instrução e julgamento (arts. 55 e 56). A sistemática é alterada no CPP. Segue-se o padrão estabelecido para o júri (art. 406 do CPP). O Juiz recebe a denúncia ou queixa, ordena a citação, colhe a defesa prévia e prossegue na instrução. Logicamente, se a defesa prévia contiver, no júri, matéria prejudicial (apontando, por exemplo, causa de extinção da punibilidade), o juiz acolherá e o processo será extinto. A única diferença no procedimento comum é que recebida a denúncia ou queixa e produzida a defesa prévia, cabe ao magistrado absolver sumariamente o acusado se acolher os argumentos defensivos. Não o fazendo, prosseguirá na instrução do feito, designando audiência de instrução e julgamento. Por isso, a única cautela para dar sintonia aos artigos do CPP, com nova redação, é ignorar a expressão ‘recebida a denúncia ou queixa’, prevista no art. 399. Quis-se dizer: ‘tendo sido recebida a denúncia ou queixa, nos moldes do art. 396, caput, e não tendo havido a absolvição sumária, nos termos do art. 397’, deve o juiz continuar com a instrução. Nada mais que isso. Portanto, inexistem ‘dois recebimentos’ da peça acusatória, nem é dado à parte (acusação ou defesa) escolher qual deles é o mais conveniente. Não deve o juiz, por outro lado, receber outra vez a peça acusatória, após ler os argumentos da defesa prévia. Ao contrário, deve mencionar que lidos os referidos argumentos defensivos, inexiste motivo para a absolvição sumária, portanto, designa audiência de instrução e julgamento, intimando-se o réu. A prescrição será interrompida no recebimento válido da peça acusatória (art. 396, caput, CPP)8”.

Em sentido oposto, ou seja, entendendo que a denúncia é recebida no momento do art. 399 do CPP, está Paulo Rangel, para quem:

Não há dúvida de que o legislador cometeu uma falta grave dentro da área da redação do recebimento da denúncia e merece um cartão vermelho. A denúncia é recebida no art. 399 e a razão é simples:

A uma, quando a denúncia é oferecida, o juiz determina a citação do réu para responder à acusação.

A duas, oferecida a resposta prévia, o juiz é chamado a se manifestar sobre a presença ou não das causas mencionadas no art. 397, isto é, se absolve sumariamente ou não o acusado.

A três, não absolvendo sumariamente o réu, aí sim o juiz recebe a denúncia e determina a audiência de instrução e julgamento.

Perceba que são passos coerentes que devem ser dados pelo juiz.

Não faz sentido o juiz receber a denúncia no art. 396 e citar o réu para oferecer a resposta prévia. Por que a resposta prévia então? A resposta prévia é uma inovação das leis modernas que entraram em vigor no ordenamento jurídico possibilitando ao juiz ouvir primeiro o acusado, antes de colocá-lo no banco dos réus. É o exercício do contraditório e da ampla defesa, pois receber a denúncia antes da resposta prévia não faria sentido.

A Lei de Drogas – 11.343/2006 – também tem a mesma regra em seus arts. 55 e 56 onde o juiz apenas recebe a denúncia após a manifestação da defesa.

A Lei do JECRIM – 9.099/95 – tem o art. 81, que permite que primeiro a defesa responda à acusação para depois o juiz receber ou não a acusação.

A expressão recebê-la-á do art. 396 não significa tecnicamente juízo de admissibilidade da acusação, mas sim o ato de ‘entrar na posse’ da petição inicial. Recebe em suas mãos a petição inicial. Se a denúncia é distribuída a vara criminal, ela é entregue ao juiz que a recebe em suas mãos, sem exercer ainda o juízo de admissibilidade9”.

Ainda com essa visão, Rogério Greco, que sedimenta:

Entendemos, com a devida venia, que a razão se encontra com a segunda corrente, que preleciona que o recebimento da denúncia só acontece, efetivamente, no art. 399 do Código de Processo Penal. Isso porque, como bem salientou Paulo Rangel, inicialmente, ou seja, no momento previsto pelo art. 396 do Código de Processo Penal, o juiz toma primeiro contato com a acusação.

Ali se observa que a inicial padece de vícios graves, a exemplo da ausência de uma das condições necessárias para regular o exercício do direito de ação, com a ilegitimidade da parte, já a rejeitará de plano. Se, pelo menos superficialmente, tudo estiver em ordem, determinará a citação do acusado para que apresente sua resposta, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.

Após a resposta do réu, depois de sopesar os argumentos e as provas trazidas para os autos, se não for o caso de rejeição, ou mesmo de absolvição sumária, receberá a denúncia ou queixa e designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente, conforme dispõe o art. 399 do Código de Processo Penal.

Concluímos, outrossim, que somente nesse momento é que se considerará interrompida a prescrição, levando-se a efeito, consequentemente, os cálculos relativos aos prazos prescricionais10.

Com o devido respeito aos citados doutrinadores que postulam a favor do recebimento da denúncia no momento do art. 399 do CPP, entendemos ser correta a primeira visão, pelos exatos argumentos muito bem sedimentados por Guilherme Nucci e Nereu Giacomolli.

Note-se que essa adoção pelo Direito Penal Militar substantivo é adequada visto que a norma expressa do Código Penal Militar se vincula não ao artigo específico do CPPM, mas à instauração do processo penal militar. Em outros termos, aplicando-se a dinâmica da resposta à acusação após o recebimento da denúncia, seguido de um novo momento em que o juiz decide pelo prosseguimento da persecução de um crime militar, o recebimento da denúncia descrito no art. 396 do CPP significará a instauração do processo penal, que, nos termos do inciso I do § 5º do art. 125 do CPM, é o marco interruptivo da prescrição da pretensão punitiva.

Esta, portanto, é uma questão reflexa à decisão do Supremo Tribunal Federal no RHC n. 142.608: definir qual é o efetivo momento do recebimento da denúncia no processo penal militar, se no momento do art. 396 ou no momento do art. 399, ambos do CPP, sendo mais adequado sustentar o primeiro momento.

Voltaremos em uma nova ocasião com mais discussões ligadas a esse julgado. 

Notas de rodapé

  1. Promotor de Justiça Militar. Mestre e doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Ciências Policias de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar do Estado de São Paulo. ↩︎
  2. “Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias”. (g. n.) ↩︎
  3. Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente”. (g. n.) ↩︎
  4. NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREIFINGER, Marcello. Manual de direito penal militar. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 864-7. ↩︎
  5. GRECO, Rogério. Curso de direito penal, cit., 2009, v. 1, p. 749. ↩︎
  6. Apud GRECO, Rogério. Curso de direito penal, cit., p. 749. ↩︎
  7. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado, cit., p. 715. ↩︎
  8. Idem, ibidem, p. 719-720. ↩︎
  9. Apud GRECO, Rogério. Curso de direito penal, cit., p. 750. ↩︎
  10. GRECO, Rogério. Curso de direito penal, cit., p. 750-751. ↩︎

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