Modular os efeitos do indulto: por que e para quê(m)?

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Fonte: Conjur

Por Alexandre Morais da Rosa e Gabriela Consolaro Nabozny

No dia 28 de dezembro, a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal, suspendeu parcialmente, em caráter liminar, o último decreto de indulto publicado por Michel Temer em 2017 (22/12). A decisão atendeu ao pleiteado em ação direta de inconstitucionalidade proposta pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge.
O instituto do indulto se insere entre as prerrogativas constitucionais do presidente da República e, no Direito brasileiro, comumente tem caráter coletivo (universal), atingidos aqueles que cumprem os requisitos elencados no decreto[1]. É declarado de ofício ou mediante provocação, e, em qualquer caso, a pena se extingue sem deixar de existir os demais efeitos da condenação — como o registro de antecedentes criminais. A comutação — também prevista no último decreto de 2017, mas ausente naquele expedido em 2016 — é o chamado indulto parcial, em que o condenado é beneficiado com a diminuição da pena proporcional e conforme os requisitos estabelecidos.
A previsão na Constituição da República se dá no artigo 84, inciso XII, em que se determina que deve ser concedido pelo chefe do Executivo nacional, mas não se estipula forma, frequência, conteúdo ou finalidade. Tradicionalmente, os decretos são expedidos próximo ao fim do ano e, por isso, são conhecidos popularmente como “indulto de Natal”, por vezes confundidos com as saídas temporárias, que correspondem a direito diverso e costumam ser solicitadas no mesmo feriado[2].
O que não se pode ignorar, de toda forma, é que o indulto, como é aplicado atualmente no Brasil, afasta-se do propósito da graça das antigas monarquias absolutistas, embora tenha seu DNA histórico. Não se trata apenas de uma manifestação de poder do soberano, mas também deve ser pensado como instrumento de política criminal e penitenciária, apto a amenizar o caos latente em que é inserido o sistema penitenciário nacional, reconhecido pelo próprio STF como um “estado inconstitucional de coisas” (ADPF 347). Não só em relação ao desencarceramento, mas para suavizar a violência estrutural despejada diariamente nos ombros de milhares de pessoas presas, canalizando expectativas e amenizando tensões, inclusive rebeliões.
Na ADI que envolve o caso apresentado, no entanto, tal questão é ignorada. A premissa utilizada para assegurar que há pouco espaço para o indulto no regime democrático atual é a de que são aplicadas e executadas penas justas, proporcionais e determinadas, definidas rigorosamente nos regimes legais, conforme o devido processo legal. Todavia, a situação observada no Brasil evidencia panorama bem diverso. Ao contrário do exposto, há constante preocupação com a retirada de direitos — tanto em relação à supressão de prerrogativas essenciais no curso do processo quanto ao total descaso com requisitos mínimos necessários ao cumprimento de pena. Basta visitar os estabelecimentos penais do Brasil.
Assim, demonstra-se que a ADI e a consequente decisão visam apenas à desenfreada “caça aos corruptos”, que parece legitimar qualquer medida desde que embasada no combate à impunidade. Entretanto, mais uma vez, ignora-se a esmagadora parcela da (super)população prisional que foge a esse emprego do conceito de impunidade e, ao contrário, é punida desenfreadamente[3]. Talvez seja isso que se queira, a saber, impor-se penas cruéis, injustas e que dão o regozijo aos que acham que se pune pouco.
Nota-se que todas as partes envolvidas na questão jurídica comentada se interessam unicamente pela classe dominante, que não representa o cerne do problema prisional. Inicialmente, observa-se que o presidente Temer, em entendimento afastado ao exposto no decreto de indulto publicado em 2016, abrandou de maneira substancial, em 2017, os requisitos para a concessão do benefício. Retirado o véu da ingenuidade e do amadorismo[4], conclui-se que tal mudança não representa ato de benevolência, mas alteração que objetiva beneficiar a determinado nicho de condenados, ligados pelo poder político.
Nesse sentido, a proposta da Procuradoria-Geral da República utiliza de inúmeros argumentos afastados da realidade para questionar a legitimidade do instituto do indulto — cabe lembrar, previsto na Constituição. Alega-se a desnecessidade do perdão da pena em decorrência da função unicamente humanitária do instituto, de serem aplicadas somente penas justas e proporcionais no país, bem como porque seria arbitrário o ato presidencial e, consequentemente, afrontaria a repartição dos Poderes. Tais premissas fogem (e muito!) ao que ocorre atualmente e demonstram a cegueira voluntária causada pelo punitivismo exacerbado.
Igualmente, e ainda mais preocupante, a decisão em sede de medida cautelar da ministra Cármen Lúcia reitera tais afirmações e alega ser o indulto legítimo apenas se conforme à finalidade juridicamente estabelecida; mais que isso seria arbítrio. Ocorre que não há fim objetivamente traçado em decorrência de o indulto ser, reitera-se, competência exclusiva da Presidência da República. Assim, qualquer delimitação (ou afastamento dessa) seria arbítrio, em verdade, de quem se propõe a fazer tal julgamento. Típico ativismo judicial. Ao alegar afronta à separação dos Poderes, o Poder Judiciário acabou por produzir decisão politizada que questiona e suspende ato de atribuição exclusiva do presidente da República. Nítido contrassenso.
A síndrome da “lava jato” coloca o país em intensa reprodução de clamores sociais e opiniões populares, afastando inclusive as decisões judiciais das premissas técnicas, tudo em busca da corrida pela punição. Mais uma vez na história são ignorados aqueles que realmente lotam as unidades prisionais e aos quais deveriam se direcionar as atenções quando se trata de política criminal e penitenciária.
Brasília se afasta da realidade brasileira e, de olhos vendados, deixa pesar ainda mais um dos lados da balança. E essa afirmação se aplica à prática dos “crimes de colarinho branco”, mas também aos atos normativos, às ações propostas e às decisões obtidas. Certamente, há motivos cediços para a defesa do indulto como instrumento de política pública. Com a decisão recente, cabe evidenciar o claro motivo de tal entendimento e para que(m) interessa que não sejam abrandados os requisitos do instituto. Se a pretensão fosse excluir os condenados da “lava jato”, bastaria se utilizar da nulidade parcial sem redução do texto, excluindo-se os condenados por corrupção, lavagem de dinheiro etc. Cuida-se de possibilidade de modulação dos efeitos, mantendo-se a lógica democrática do indulto. Assim, não se tomaria uma decisão que no fundo agrava o caótico estado de coisas inconstitucional vivenciado em muitos estabelecimentos penais do Brasil. Negar a todos os condenados a incidência do indulto encontra, assim, a nossa recusa.

[1] PACELLI, Eugênio; CALLEGARI, André. Manual de Direito Penal – Parte Geral. 3ª edição. Atlas, 2017, p. 575.
[2] VALOIS, Luís Carlos. De novo, o medo do indulto natalino! 2015. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/backup/de-novo-o-medo-do-indulto-natalino-por-luis-carlos-valois/>.
[3] BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos. Violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 38. “Quando alguém fala que o Brasil é o ‘país da impunidade’, está generalizando indevidamente a histórica imunidade das classes dominantes. Para a grande maioria dos brasileiros — do escravismo colonial ao capitalismo selvagem contemporâneo — a punição é um fato cotidiano.”
[4] ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a Teoria dos Jogos. 4ª edição. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 34.

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