O futuro do direito do trabalho na era pós-pandêmica – parte I

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8 de Outubro de 2020

A crise mundial de múltiplas facetas (social, humanitária, sanitária, científica, econômica etc) trazida por um inimigo invisível a olho nu, espalhou-se por todos os continentes, levando a Organização Mundial da Saúde a reconhecer, em março de 2020, a situação de pandemia causada pela “Corona virus disease – Covid-19”.

Tão logo reconhecido o estado pandêmico, medidas de contenção do corona vírus foram adotas em escala global. A disrupção econômica e social fez com que as relações sociais se transformassem para sempre, fazendo com que o direito encontre respostas adequadas mediante a adoção de medidas para o enfrentamento da crise.

Como tais medidas impactam, ainda que em diferentes graus, as atividades econômicas, emergem inevitáveis problemas a serem superados pelo Direito do Trabalho, despreparado, normativamente, para dar todas as respostas necessárias. A preocupação não é só imediata, mas também lança seus olhos para um realidade pós-pandêmica.

A preocupação inicial dos Estados e da sociedade foi a de encontrar respostas rápidas para o enfrentamento da crise, inclusive com a adoção de medidas legislativas trabalhistas flexibilizadoras da legislação então vigente, como se deu no Brasil com a edição, sobretudo, das Medidas Provisórias nºs 927 e 936, esta última convertida na Lei nº 14.020/2020. A preocupação inicial, como dito, foi a de encontrar respostas para o enfrentamento da crise em curtíssimo prazo. Mas, já é chegado o momento de se refletir acerca do porvir, especialmente no contexto do mercado de trabalho pós pandemia e no papel reservado ao Direito do Trabalho.

O Direito do Trabalho do futuro enfrentará pela frente, como principais inimigos, a retração econômica, o desemprego em massa, a extinção de postos de trabalho tradicionalmente existentes, o aumento populacional, a preocupação redobrada com o meio ambiente labor-ambiental e, o maior inimigo de todos, a tentativa persistente, do ponto de vista histórico, de subjugá-lo a uma mera variável econômica, numa verdadeira “colonização economicista”.

Com efeito, a história revela que, em momentos de crise econômica, avoluma-se o coro de críticas ao “monolitismo”, ao “garantismo” e à “rigidez das normas jurídico-laborais”. O Direito do Trabalho vê-se então remetido ao banco dos réus, na certeira expressão de João Leal Amado, acusado de irracionalidade normativa e de criar entraves no campo econômico.

Por certo, não se duvida que surgirão (ou, ressurgirão) os arautos da flexibilização trabalhista (especialmente da flexibilização de desregramento), eregindo-a como o “leitmotiv” do momento, como a panaceia de todos os males, relegando direitos do trabalhador notícias a um mero instrumento a serviço da promoção do emprego e do investimento, colocando em xeque sua verdadeira axiologia protetiva. Acentuar-se-ão as campanhas promotoras do conflito social entre “insiders” (já empregados) e os “outsideres” (desempregados ou com vínculo precário), no sentido de que é preciso desproteger para criar empregos.

Em breve síntese, este é o cenário pós-pandêmico no qual o direito do trabalho estará inserido. Pode-se dizer: cercado de inimigos por todos os lados. Mas, a mesma história que revela que em momentos de crise econômica o direito do trabalho e seu princípio protetivo nuclear são colocados em xeque, prova também que o arrefecimento de direitos sociais jamais teve o condão de promover empregos e salvar a economia. O mesmo erro não pode ser repetido. Ao revés, o aumento da proteção social e da instituição de um verdadeiro garantismo social são as medidas a serem adotadas.

No contexto pós-pandemia não se pode olvidar do código genético do direito do trabalho, que surgiu como um direito regulador de uma relação essencialmente conflituosa e estruturalmente assimétrica, como um direito de tutela (caráter tuititivo) dos trabalhadores subordinados, como uma ordem normativa de compensação da debilidade fática destes face aos respectivos empregadores, com a ideia de retificação, no plano jurídico, das desigualdades fáticas (ideia jurídico-retificadora).

Estima-se que mais de 25 milhões de empregos formais e vagas informais podem ser perdidas no mundo como resultado da COVID-19. O impacto da pandemia no mundo do trabalho é de significativo alcance, levando milhões de pessoas ao desemprego, ao subemprego e à pobreza. Nesse quadro, o direito do trabalho e, por consequência, as normas sociais, terão um papel fundamental na retomada da normalidade. Para isso, é preciso que o mercado tenha no direito do trabalho não um entrave aos seus automatismos, mas sim um aliado, forjando-se assim um sistema jurídico pautado nos ideais do Estado Social, tirando do papel a extensa legislação simbólica.

As medidas devem ter por fundamentos a proteção social, o estímulo da economia e a promoção do trabalho e da renda. A solução perpassa, necessariamente, em medidas de ampliação da proteção social aliadas à instrumentos de manutenção de empregos, tais como a redução da jornada de trabalho, aumento das licenças remuneradas, benefícios fiscais para as empresas, promoção de políticas fiscais e monetárias focadas, sobretudo, em apoio financeiro a setores econômicos específicos. É preciso ainda criar, em larga escala, o chamado salário mínimo de inserção, como já defendido por Alain Supiot (Crítica do Direito do Trabalho), ou, uma renda universal básica.

Tais medidas não pode ser adotadas sem a observância do tripartismo. O diálogo social mostra-se fundamental, sobretudo porque certos grupos sofrerão impactos desproporcionais em relação a outros, o que poderá aumentar a desigualdade, especialmente entre os chamados trabalhadores hipervulneráveis, historicamente já discriminados (jovens, idosos, deficientes, negros, indígenas etc.). Nesse particular, o Direito do Trabalho terá um papel fundamental na prevenção e eliminação da discriminação e e exclusão (Convenções nº 100 e 111 da OIT).

Os movimentos sindicais também precisam rever seu papel e, mais do que nunca, na medida em que se trata de um problema global, passar a implantar um sindicalismo transnacional, na forma como já se movimenta, há tempos, o capital. Para tanto, países que ainda se mostram refratários à liberdade sindical plena devem urgentemente se comprometerem ao cumprimento da Convenções nº 87 e 98 da OIT. Com isso, poderá se rever a função social dos sindicados, com a consequente e necessária ampliação de seus espaços de negociação. No contexto pós-pandemia o direito o trabalho deve criar mecanismos para atuação das entidades sindicais em nível transnacional, para construção e efetivação de um sindicalismo global.

O Direito do Trabalho deverá voltar suas atenções não só para medidas de recuperação econômica, mas também para uma das consequências naturais do distanciamento social, que foi a intensificação de algumas formas de trabalho, em especial do trabalho remoto ou teletrabalho. A expansão desse regime de trabalho demanda sérias respostas, sobretudo no campo relacionado à tutela da saúde e proteção de dados (LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados e GDPR – General Data Protection Regulation) dos teletrabalhadores. Aqui, as normas internacionais do trabalho, sobretudo as relativas ao meio ambiente do trabalho (cite-se, por exemplo, a Convenção nº 155 da OIT), devem passar a ter uma importância bem maior do que a que normalmente lhe é atribuída.

A propósito do trabalho remoto e com o uso de tecnologias da informação, uma preocupação constante do direito do trabalho do porvir consiste na proteção redobrada da intimidade e da privacidade dos trabalhadores, especialmente do seu direito à autodeterminação informativa. Os limites do poder de controle eletrônico do empregador precisam ser redimensionados para que não se desestruturem os limites do espaço e do tempo no trabalho. De igual modo, a preocupação quanto aos dados de saúde dos empregados, que são dados sensíveis, nos termos da LGPD e da GDPR, enquadra-se no papel do Direito do Trabalho no cenário pós-pandêmico.

Outro ponto relevante a ser tributado ao direito do trabalho será a criação de normas relacionadas à capacitação dos trabalhadores (empregados ou não) para as normas formas de trabalho no campo tecnológicos. Profissões serão extintas e outras surgirão. O Direito do Trabalho tem, portanto, importante papel na tutela da qualificação constante e no rearranjo dos trabalhadores, em especial os jovens, que devem ser dotados de novas habilidades ou “soft skills”.

O cenário de profunda recessão global desde a segunda Guerra Mundial exigirá dos “players” e do direito do trabalho, sobretudo do setor privado, a tomada de medidas coordenadas e sustentáveis em larga escala, numa espécie de processo regenerativo da economia global, o que incluirá também, dentre os papeis já descritos acima, a criação de um sistema de seguridade mais amplo, a criação de novas formas de trabalho decente, fábricas ecológicas, sempre tendo o ser humano como o objeto central de todas as políticas sustentáveis.

Como se nota, não se trata apenas de uma crise global de saúde. É, também, uma crise econômica e do mercado de trabalho. Problemas globais exigem respostas globais e minimamente concertadas em escala mundial. Ao revés de se transmudar o Direito do Trabalho em variável econômica, a resposta está em relegar a economia ao Direito do Trabalho, erigindo este último, como epicentro de uma retomada global da economia.

Para isso, será fundamental um pacto mundial entre os Estados para dotar a Organização Internacional do Trabalho de poderes coercitivos, impondo-se normas internacionais com natureza de “hard law” e não mais de “soft-law”, como já se dá com a Organização Mundial do Comércio. Em outras palavras, é preciso dotar a OIT com garras da OMC. É claro que as normas mundiais trabalhistas, ou seja, os standarts mínimos, não podem ser invocados com fins protecionistas e não é isso que aqui se defende. Mas, é passada a hora da adoção de uma legislação internacional social com natureza coercitiva. As ideias de cláusula social e selo social, nunca implementadas, são mecanismos podem se mostrar eficientes para instrumentalizar tal papel.

Referido pacto social global, entendido como uma verdadeira concertação social de nível mundial, deve mirar para a ideia de garantismo social, na acepção, “mutatis mutantis”, do garantismo penal apregoado por Ferrajoli. Para tanto, o compromisso dos Estados e Poderes públicos é fundamental. Trata-se de uma questão não só jurídica, mas também política.

Portanto, ao fim e ao cabo, pode-se sinteticamente afirmar que o papel reservado ao Direito do Trabalho é o de, mediante todas as medidas acima apontadas, ser o protagonista na retomada do emprego mundial e, por consequência, do fortalecimento da economia. Para tanto, é indispensável que as normas sociais sejam alçadas ao epicentro do qual devem partir todas as medidas políticas e econômicas tomadas a partir de prévio diálogo social tripartite, tendo a proteção humana como destino final não só do direito do trabalho, mas de toda nova ordem global que se erigirá. O retorno ao passado “flexibilizador” não é uma opção, pois já demonstrado inúmeras vezes o seu fracasso. O novo normal deve ser um normal melhor. Eis o papel a ser desempenhado pelo Direito do Trabalho.

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8 de Outubro de 2020