“Professor, Literatura não é coisa de Vestibular? ”

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9 de Agosto de 2014

Professor-Literatura-não-é -oisa-de-Vestibular”

Por: Fabrício Dutra

Realmente, quando se fala em Literatura – no restrito sentindo de ramificação das aulas de Língua Portuguesa -, remete-se ao universo das provas de Vestibular, nas quais o candidato deve saber, além da interpretação do conteúdo textual, características concernentes à época em que o texto foi produzido e ao estilo do autor. Quem não se lembra de questões do tipo: “Não caracteriza o Simbolismo a atitude mística perante a vida, buscando o inatingível, o oculto…”?

Esse tipo de questão, de fato, não é exigido nos concursos públicos brasileiros – mas não há necessidade de prévias comemorações comemorar previamente. Não cobrar características de épocas e de autores não significa que não poderá haver em sua prova um texto literário. Aí é que mora todo o perigo!

Na atualidade, o brasileiro lê muito pouco os clássicos, os grandes autores, os textos literários. Quando lemos, buscamos literatura de autoajuda, livros que nos ensinam a criar nossos filhos, livros que nos ensinam a enriquecer nossos filhos ou livros cuja tema é o amor de uma vampira por um lobisomem. Nada contra, pois qualquer contato com um livro desses acaba nos aproximando daquilo que é o Português-padrão, tão importante de ser compreendido. No entanto, há de se lamentar o minúsculo contato com autores como Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Ferreira Gullar, Graciliano Ramos, entre outros.

Resultado disso: quando a banca resolve cobrar interpretação e compreensão de textos literários, vem uma forte sensação de pouca familiaridade com o que se lê, devido à falta de contato, certamente.

Em 2012, na prova da Polícia Federal, a seguinte poesia de Cecília Meireles foi alvo de questões da prova:

Romance LXXXI ou dos ilustres assassinos

Ó grandes oportunistas,

sobre o papel debruçados,

que calculais mundo e vida

em contos, doblas, cruzados,

que traçais vastas rubricas

e sinais entrelaçados,

com altas penas esguias

embebidas em pecados!

 

Ó personagens solenes

que arrastais os apelidos

como pavões auriverdes

seus rutilantes vestidos,

– todo esse poder que tendes

confunde os vossos sentidos:

a glória, que amais, é desses

que por vós são perseguidos.

Do poema acima, não foi cobrado do aluno o reconhecimento do período literário a que ele pertencia; entretanto, para depreender informações de texto poético, nunca se pode dissociá-lo de questões relacionadas às outras formas de cultura. Se não houver uma visão global dos momentos literários e dos escritores, a interpretação pode ficar comprometida.

O objetivo do texto literário não é informar ou esclarecer algo ao leitor, muito menos convencer o leitor de algo; ele – o texto literário – é a livre expressão da linguagem, o modelo artístico de se produzir linguagem. Os textos literários nem sempre estão ligados à realidade e muitas vezes são subjetivos, podendo existir diferentes interpretações de leitores distintos. Com isso, o candidato não pode deixar de conhecer o sentido conotativo da linguagem, em que predominam as figuras de linguagem, assunto que os candidatos nunca podem “deixar de lado” em provas. Caso a banca exija a substituição de um termo por um sinônimo, é preciso dominar a múltiplas possibilidades de significação do termo cobrado, fora do seu sentido real, para se chegar ao gabarito.

Quando o assunto é o domínio de regras gramaticais, todo cuidado é pouco. Nem sempre a disposição das frases se encontra na ordem direta, fato que é comum em poesias e que pode atrapalhar o candidato no reconhecimento das funções sintáticas, além de relações de regência e concordância.

Na prova de 2013, o CESPE, na prova do Banco Central, exigiu questões sobre o texto de um dos poetas mais cobrados em concursos públicos: Ferreira Gullar. Sua poesia, cujo título é “Não há vagas”, retrata uma forte crítica social sobre pobreza, desemprego, preço alto de alimentos, sonegação.

Não há vagas

 Ferreira Gullar

— porque o poema, senhores,

está fechado: “não há vagas”

Só cabe no poema

25 o homem sem estômago

a mulher de nuvens

a fruta sem preço

28 O poema, senhores,

não fede

nem cheira

Questão 7: O emprego do vocativo “senhores”, na terceira e na quarta estrofes, atenua o tom irônico do poema.

Questão 8: A expressão “não fede/nem cheira”, na última estrofe, está empregada em sentido denotativo.

Questão 11: O título do poema antecipa a crítica contundente que o poeta dirige à falta de oportunidades no mercado de trabalho brasileiro.

Notem que a banca exige de Gramática – com o reconhecimento do vocativo – a figuras de linguagem – ironia. O sentido denotativo também é exigido, além da análise semântica da intenção do autor com o título do poema.

Na prova de nível superior, surge Clarice Lispector, com o texto “O Escrito”. Do texto – que, embora feito em prosa, também trabalha de forma conotativa a linguagem – a banca CESPE exigiu questões de Gramática e de reconhecimento de compreensão da intenção da autora.

Ele é agora gerente de uma loja de sapatos. Não porque escolheu, mas foi o que lhe restou. Perguntava-se sempre: onde está o meu erro? O erro em relação a seu destino, 4 queria ele dizer. Não há grandes motivos a procurar no fato de alguém ser gerente numa loja de sapatos. Mas uma vez que ele mesmo se pergunta e estende sapatos como se não pertencesse

7 a esse mundo — o motivo da indagação aparece. Por que realmente? Fora, por exemplo, o melhor aluno de história e até por arqueologia se interessava […] Clarice Lispector

Questão 9 No segmento “mas foi o que lhe restou” (R.2), a referência do pronome “o” é a expressão nominal “uma loja de sapatos”(R.1), e a do pronome “lhe” é o substantivo “gerente” (R.1)

Questão 14 Infere-se do texto que a autora acredita que o cenário de conflitos ligado a profissões é irrelevante no que se refere à vida do gerente da loja de sapatos, vivida com singela nobreza.

Certamente o candidato que já teve contato com outras manifestações artísticas da autora tem melhor domínio sobre o texto e melhores condições de fazer as devidas inferências exigidas pela banca. Daí, a importância de não se olvidar a importâncias dos autores clássicos do mundo literário.

Machado de Assis é outro grande autor que costuma aparecer, com seus maravilhosos textos, em provas de concursos. Observem a questão, que envolve o reconhecimento de uma função sintática, retirada do texto “A Teoria do Medalhão”:

“O único meio é lançar mão de um regime debilitante: ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos etc.; para esse fim, deves evitar as livrarias, mas, de quando em 31 quando, elas serão de grande conveniência para falares do boato do dia; de um contrabando, de qualquer coisa: verás que muitos dos leitores, estimáveis cavalheiros, repetir-te-ão as 34 mesmas opiniões, e uma tal monotonia é saudável”.

Questão 1 Na linha 33, o segmento “estimáveis cavalheiros” é um aposto explicativo da expressão “muitos dos leitores”.

Como versa o ditado infantil, “parece fácil, mas é difícil”. O elemento “estimáveis cavalheiros” tem aspecto muito parecido com o do vocativo, o que deve ter causo arrepios em muitos candidatos. Machado e suas incógnitas: Capitu traiu Bentinho? Aquilo, no texto, era um aposto ou um vocativo? Pois é, quando o texto literário, o buraco é mais embaixo. Vocês acham que traiu ou não traiu?

É preciso corrobora que, embora a interpretação seja subjetiva, há limites que não podem ser extrapolados. Em se tratando de textos literários ou não, nunca deixem de retornar ao texto, pois é lá o “universo” em que a resposta se encontra. Aquilo que será a resposta para os itens está no texto, ou o texto permite que o leitor depreenda.

Não se pode desprezar os textos literários, visto que eles – como todas as formas de expressão da arte -, além de aparecerem em provas de concursos, enriquecem significativamente nossa visão de mundo. É impressionante como o prazer de ter contato com esse tipo de leitura é muito maior na fase adulta, quando já temos condições e experiências que nos permitam por eles navegar. Não se deixem enganar pela sensação falsa de que literatura é algo chato, que a escola nos deixou, num momento em que éramos completamente imaturos. Experimentem ler! Ousem pensar! Leiam os clássicos!

“Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições de apreciá-los”.

Ítalo Calvino.

 

Gabarito das questões

Ferreira Gullar

7 c

8 e

11 e

Cecília Meireles

9e

14c

Machado de Assis

1 c

 

Fabrício Dutra: Graduado em Letras – Português e Alemão – pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pós-Graduado em Língua Portuguesa lato sensu no Instituto Liceu Literário Português (Coordenação Prof. Evanildo Bechara). Atualmente, ministra aulas de Gramática e Texto no Gran Cursos e cursa Especialização em Revisão Textual.

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9 de Agosto de 2014