“A boa solidão é oposta ao sentimento de não precisar do outro. Perceber que, sim, necessito do outro, porém não de forma absoluta, transforma a solidão em potência criativa e sem a carga de humilhação da solidão patológica.” – Leandro Karnal
Jesus passou quarenta dias isolado no deserto. Buda encontrou iluminação espiritual sob uma figueira, e sem a companhia de ninguém. Maomé estava sozinho quando Gabriel falou com ele pela primeira vez, numa caverna. Moisés, igualmente só, recebeu os Dez Mandamentos.
Evoco esses exemplos pensando nos vários alunos do Gran que reclamam da solidão que toma conta de quem decide se preparar a sério para concurso público, tendo a companhia, pode-se dizer, apenas de videoaulas e PDFs, além do apoio dos nossos extraordinários professores. Para o concurseiro que se preze, sempre foi assim, solitário, ao menos em parte do tempo. Meu pai, por exemplo, que levou quatro anos até ser aprovado, já relatou como viveu sozinho numa Kombi-trailer enquanto estudava de madrugada, mantendo os pés mergulhados numa bacia de água fria para não dormir (é científico, só dormimos depois de esquentar os pés). Foi assim que foi aprovado dentro das vagas em nada menos que oito concursos, incluindo um primeiro lugar.
É, caro leitor, as coisas parecem dar certo para quem se dispõe a se isolar durante algum tempo e em nome de um projeto maior. Talvez seja a vida sinalizando que algum grau de solidão tem lá sua função edificante.
Antes de tudo, é preciso compreender que solidão não se resume à ausência de pessoas por perto, assim como estar rodeado de gente não é sinônimo de uma vida livre do sofrimento associado ao isolamento. Estamos falando de algo bem mais profundo, de uma sensação específica de vulnerabilidade que só os solitários conhecem. O filósofo Schopenhauer diria: “Solitários, somos livres, porém passamos frio. A dois ou em grupo, as diferenças causam dores.” A verdade é que somos gregários e, ao mesmo tempo, sofremos por viver em sociedade, eventualmente precisando estabelecer barreiras para manter afastados aqueles que nos tiram do eixo.
Talvez até por isso há quem consiga, justamente ao se isolar, atingir o máximo da reflexão, da criatividade, da descoberta. Na solidão percorre-se o vazio, ouve-se o silêncio, age-se a partir do fluxo de consciência. Ela é o pano de fundo neutro que permite extrair o máximo de uma dada situação. É na solidão que se descobre a própria identidade. Foi assim com Jesus, que, sozinho no deserto, sendo testado como nunca (até aquele momento), mostrou toda sua força quando confrontado com o diabo. Inspirados por Ele, também nós devemos enfrentar nossos demônios, no silêncio da nossa individualidade. Ao fazê-lo, caberá somente a nós mesmos compreender se estamos sendo punidos, ameaçados, amaldiçoados ou, na verdade, aprendendo novas lições para seguir em frente.
Por isso, meu amigo, minha amiga, ainda que absoluta, a solidão não deve pesar demais, tampouco ser potencializada, convertendo-se em angústia. Ao contrário, deve ser vista como uma ótima oportunidade, seja para algo profundo como o autoconhecimento, seja para algo mais simplório, como uma nova e prazerosa leitura. Ficar só pode ser essencial para quem se dedica de corpo e alma a um projeto grandioso, a exemplo da busca por estabilidade financeira, mas também pode ser explorada com mais simplicidade por quem deseja apenas aproveitar um belo dia de sol ou deleitar-se com uma paisagem, um quadro, um jardim bonito, em total silêncio.
Pensando bem, até a pandemia que nos aflige veio nos ensinar o valor da solidão. Acho improvável não sair transformado desse último ano e meio de isolamento compulsório. Alguns de nós descobriram gostos e habilidades até então ignorados. Houve quem começasse a cozinhar, quem aprendesse na marra a trabalhar com ferramentas tecnológicas, quem desempenhasse o papel de professor dos filhos… Algumas relações se fortaleceram, outras se desintegraram… Tudo num contexto em que fomos catapultados a uma vivência mais introspectiva e de inevitável reflexão. Talvez resida aí a evidência de como pode ser interessante periodicamente se recolher para tentar encontrar o que Sócrates chamaria de algo dentro de você, seu gênio único e consciente.
Em resumo, solidão não é, em si, negativa ou positiva; depende da forma como é encarada. Quando expressa um ato de vontade, ganha outra conotação, a de solitude. É a capacidade de ficar bem, ainda que sozinho, por escolha pessoal, escutando a própria voz e buscando conhecer-se melhor, com um propósito maior. Todo artista sabe que precisa de momentos de isolamento para produzir algo belo.
Na solidão do meu escritório escrevi este artigo, e você, na solidão do seu cantinho, aí, está lendo esta mensagem. Todos somos, em algum nível ou em alguns momentos, solitários. A solidão, como diria Aristóteles, cria deuses e solta as bestas que se escondem dentro de cada um de nós.
Deixemos, então, claro: solidão não é motivo de vergonha. Ao contrário, dignifica. Todas as pessoas deveriam ficar sozinhas de vez em quando para estabelecer um diálogo interno e descobrir sua força pessoal. A harmonia e a voz do espírito só podem ser encontradas em nosso interior.
Aprenda a lidar com sua solidão, concurseiro. Trate de remediá-la quando estiver lhe fazendo mal e de tirar o melhor proveito dela quando identificar uma oportunidade. Lembre-se: cada fase tem seu tempo e cada tempo tem sua fase, o que inclui a solidão e, sobretudo, a solitude. Use a internet a seu favor, para aprender conteúdos interessantes e conectar-se com pessoas que tenham o mesmo propósito que você.
Agora, quando for inevitável estar só, trate de aproveitar sua própria companhia.
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