A menina que vendia merenda, tornou-se desembargadora e hoje é referência contra trabalho infantil

Avatar


23 de junho4 min. de leitura

Zuíla Dutra

A desembargadora Maria Zuíla Lima Dutra com a mãe, sua ‘heroína’ (Foto: Arquivo Pessoal/BBC)

Aos 63 anos, a desembargadora Maria Zuíla Lima Dutra ainda se lembra de quando, muito pequena, vendia merenda em fábricas e apanhava pedra das pedreiras de Santarém, no Pará, para ajudar a mãe. Mas não se lembra quantos anos tinha. Cinco anos? Talvez menos, diz.

“Eu era muito pequena. Não tenho lembrança de algum período da minha infância em que eu não estivesse trabalhando.”

A família de Zuíla era muito pobre. A mãe, analfabeta, criava sozinha os cinco filhos. Estudar exigia força de vontade: a menina estava sempre cansada de acordar de madrugada e, sem luz elétrica em casa, a lamparina cansava ainda mais os olhos. Zuíla pedia às colegas os restos dos cadernos delas e, com as folhas ainda em branco, sua madrinha costurava cadernos para que ela pudesse estudar.

Vendedora de merenda, trabalhadora de pedreira, a menina seguiu arrancando pedras no meio do caminho e se transformou em referência na luta contra o trabalho infantil no Pará e no Brasil.

Foi telefonista, professora de matemática, funcionária do Banco do Brasil, cursou Direito, virou juíza do Trabalho em 1995 e em maio deste ano tomou posse como desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (Pará e Amapá).

‘Filhas de criação’
Sua dissertação de mestrado, defendida em 2006 na Universidade Federal do Pará e publicada em livro no ano seguinte, analisa as trajetórias de meninas saídas do interior paraense para trabalhar na casa de terceiros em Belém.

São as chamadas “filhas de criação” – um eufemismo para disfarçar o que a desembargadora, na vida, na academia e na prática profissional, constatou ser a exploração sem limites de uma mão de obra jovem e barata.

“Minha mãe, mesmo analfabeta, teve a sabedoria de não deixar que nenhum dos filhos saísse de perto dela.”

Em entrevista à BBC Brasil por e-mail e telefone, Zuíla Dutra relembrou sua trajetória e analisou a persistência do trabalho infantil doméstico no Brasil (apesar da queda verificada nos últimos anos).

“Muitas vezes, nas audiências, os empregadores negavam veementemente a relação de trabalho, alegando tratar-se de ‘filha de criação’. Mas as provas demonstravam claramente a existência de autêntico vínculo laboral (relação de trabalho) e, mais ainda, de superexploração de trabalho. Esse tipo de explorador de mão de obra doméstica utiliza a expressão ‘filha de criação’ como substitutivo para ‘trabalho escravo’, ‘trabalho servil’ e outros assemelhados”, afirma ela.

Rotina de exploração
“Éramos muito pobres. Minha mãe, Oscarina, criou os cinco filhos sozinha. Analfabeta, não tinha profissão definida, lavava roupa, fazia todo tipo de serviço. Morávamos de favor no fundo do quintal de uma fábrica de beneficiamento de látex, num canto sem água nem luz. Então consentiram que ela fizesse merenda para vender nas fábricas, e eu e meus irmãos vendíamos. Eu me lembro perfeitamente: um levava o tabuleiro com suco, outro os sanduíches”, conta a desembargadora.

“Minha mãe, mesmo analfabeta, teve a sabedoria de não deixar que nenhum dos filhos saísse de perto dela. Um dia, na fábrica, um casal de São Paulo quis me levar para morar com eles. Eles diziam que eu ia estudar, ter tudo. Minha mãe não deixou, dizia que filho tinha que ficar com ela. Era a mesma história de hoje, prometem tudo, mas na verdade vira uma rotina de exploração, com jornadas de 16, 18 horas”, afirma.

Aos 16 anos, Zuíla passou no concurso público para telefonista. Foi professora de matemática e, posteriormente, funcionária do Banco do Brasil.

Embora sonhasse ser juíza do Trabalho, só pôde fazer Direito alguns anos depois, a partir de 1990, quando o curso foi criado em Santarém. Logo depois mudou-se com a família para Belém, onde se formou e se tornou juíza, fazendo do combate ao trabalho infantil uma das missões de sua vida.

A desembargadora integra a Comissão Nacional de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem do Tribunal Superior do Trabalho e coordena idêntico grupo no TRT da 8ª Região. Entre as ações desenvolvidas estão palestras em escolas e uma marcha que reuniu mais de 20 mil pessoas em Belém no ano passado.

Neste ano, o foco é esclarecer jovens e empresários sobre a Lei da Aprendizagem, que estimula a formação profissional e supervisionada, em algumas carreiras, de adolescentes a partir de 14 anos.

Situação aceita
Para Zuíla Dutra, uma das dificuldades do combate ao trabalho infantil doméstico é que ele, diferentemente do que ocorre quando se vê uma criança numa pedreira ou carvoaria, não causa indignação no grosso da sociedade. Pelo contrário: acontece dentro das casas de família e é culturalmente aceito como um ato de solidariedade ou uma chance de ascensão social.

A rotina da trabalhadora doméstica infantil é outra, alerta: o mais comum é que a garota se afaste da família, abandone a escola ou pouco possa estudar, e ainda seja cotidianamente submetida a jornadas longas, sem folga semanal e com salário abaixo do mínimo legal – além de enfrentar riscos que vão desde acidentes domésticos, como ser quimada por uma panela de água quente, até o assédio sexual dos patrões.

“A cantilena dos empregadores para atrair a presa é sempre a mesma, no sentido de que vão tratar a menina como ‘filha’, oferecendo-lhe estudo e a oportunidade para mudar de vida. O que se observa, em regra geral, é que os filhos das pessoas que exploram o trabalho infantil doméstico frequentam escola particular de excelente qualidade e dispõem de tempo para brincadeiras com outras crianças, tratamento que as meninas empregadas jamais recebem. Até mesmo a frequência à escola pública é dificultada ou negada, diante da extensa e penosa jornada de trabalho”, afirma.

A desembargadora destaca outros problemas, como a falta de maturidade de uma menina ou adolescente para cuidar de outras crianças, e a retirada da garota do convívio familiar. Apesar disso, ainda é comum que famílias pobres, por necessidade, mandem suas filhas para morar e trabalhar como agregadas em outras casas.

“De irmã ou filha, ela passa à condição de serviçal, empregada, babá ou agregada. Para esses pais ou mães, tal doação representa libertar sua filha da necessidade, pois imaginam que ela terá escola, comida, teto, roupa, calçados e lazer garantidos. Pensam estar oferecendo a chance de um futuro diferente do seu. As meninas que são entregues por seus pais para serem criadas como ‘filhas’ na verdade não passam de mão de obra explorada de forma desumana, salvo raríssimas exceções.”

Zuíla Dutra sabe que ela própria é uma exceção. Em sua trajetória, destaca seguidamente o papel da mãe, Oscarina, que nunca cedeu a quem quisesse levar sua prole como “filhos de criação”. Os cinco filhos estudaram e só duas, por decisão pessoal, não concluíram o curso superior.

“Já adulta, eu ensinei minha mãe a escrever o nome. Minha mãe está viva, tem 85 anos, e foi à minha posse como desembargadora. É minha heroína”, orgulha-se.

Fonte: Globo.com

Avatar


23 de junho4 min. de leitura