E Chicó desafia Cabo 70 e Vicentão para um “truelo”…

Chicó cometeu crime militar?

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2 de Agosto de 2020

Todos conhecemos a obra de Ariano Suassuna intitulada o Auto da Compadecida, onde figuras pitorescas vivem uma trama cheia de idas e vinda e com passagens magnificas.

Para melhorar nossa degustação, o livro ganhou importante adaptação para as telas, lançada em 2000, com a produção de Guel Arraes, que também foi seu roteirista ao lado de João falcão e Adriana Falcão.

Chamo sua memória para a cena do “truelo” em que, desejando ficar com Rosinha, por uma estratégia de João Grilo, o “frouxo” Chicó, aparenta desafiar os valentões Cabo 70 e Vicentão para um “truelo”, ou seja, um duelo de três.

O final da cena também conhecemos, em vez de enfrentar Chicó, Cabo 70 pensa estar à beira de enfrentar Vicentão, e vice-versa, o que faz com que se acovardem e saiam em desabalada carreira para não mais aparecerem no restante do conto.

Mas o que essa cena tem com o Direito Penal Militar (CPM)?

Diretamente, nada. Mas, de maneira indireta, dá ensejo a chamar a atenção para um crime militar pitoresco, trazido apenas pelo Código Penal Militar, o desafio para duelo (art. 224 do CPM).

Parido em 21 de outubro de 1969, com entrada em vigor em 1º de janeiro de 1970, o Código Penal Militar (CPM) possui dispositivos bem peculiares, que podem causar estranheza em dias atuais.

Um desses dispositivos é, sem dúvida, o art. 224 que capitula o crime de desafio para duelo, delito pouco comentado e, portanto, digno de atenção do concursando, especialmente se tivermos em mente que, em algumas questões, o examinador busca fugir do trivial.

Que tal dar uma breve olhada neste crime?

O art. 224 assim dispõe:

Art. 224. Desafiar outro militar para duelo ou aceitar-lhe o desafio, embora o duelo não se realize

Pena – detenção, até três meses, se o fato não constitui crime mais grave.

Topograficamente previsto na Seção I (crimes contra a liberdade individual) do Capítulo VI (crimes contra a liberdade) do Título IV (crimes contra a pessoa), o tipo penal pretende tutelar a liberdade do indivíduo, marcada pela lesão à autodeterminação com o constrangimento do desafio para o duelo.

Muito embora se possa também entender visada a proteção da vida, no simples desafio isso não ocorre, visto que se o duelo efetivamente acontecer, a subsidiariedade do delito importará na subsunção a outro crime mais grave, como o homicídio consumado; este sim tem o direito à vida como objetividade jurídica.

O sujeito ativo do delito, por restrição do próprio tipo penal, é apenas o militar, federal ou estadual, compreendido à luz do art. 22 do CPM, ou seja, apenas o militar da ativa. O sujeito passivo, também por restrição do próprio tipo penal, é apenas o militar, federal ou estadual, devendo, da mesma forma, ser compreendido à luz do art. 22 do CPM (militar da ativa). Incluam-se aqui o militar desafiado e o desafiante, neste último caso, somente na modalidade de aceitar o desafio.

Não é demais lembrar que o art. 22 do CPM traz a interpretação autêntica contextual, que, muito embora alguns defendam ter sido revogada, minimamente, traz a intenção do legislador ao grafar a palavra “militar” como significando o militar incorporado, ou seja, militar da ativa, o que deve servir, ao menos teleologicamente, como vetor de interpretação da norma penal militar.

Assim, respondendo a indagação do subtítulo, Chicó não cometeu o crime militar de desafio para duelo, pois não é militar da ativa. Nem mesmo o Cabo 70, integrante da Força Pública da cidade de Taperoá cometeu o delito, pois o aceite, embora tenha sido de um militar da ativa, não foi de um desafio de outro militar, como exige o tipo penal.

Cuidemos, agora, dos elementos objetivos.

Sem par na legislação penal comum, o tipo penal em comento possui como primeira conduta nuclear desafiar, que significa chamar impetuosamente, invocar outro militar ao duelo. A outra conduta prevista no tipo penal, também nuclear, é aceitar o desafio formulado, que significa anuir, concordar com a prática do duelo.

O meio empregado pode ser a linguagem oral, escrita – carta, e-mail etc. –, gestual ou outro meio que simbolize o desafio.

Duelo é o combate armado entre duas ou mais pessoas (podendo, então, ser o “truelo” de Chicó), sem que haja estratégia de cobertura e abrigo, ou seja, os participantes se expõem uns aos outros, confiando apenas na destreza própria e no despreparo dos demais. A arma utilizada pode ser qualquer uma, revólver, pistola, espada etc.

É imprescindível a sugestão de emprego de arma, conforme decidiu o Superior Tribunal Militar, em 30 de setembro de 2008, na Apelação n. 2008.01.050953-4/PE, sob relatoria do Ministro José Coêlho Ferreira, cuja ementa registra:

APELAÇÃO. MPM. ART. 223 DO CPM (AMEAÇA). CÓLERA, REVOLTA OU IRA. ESTADO DE EMBRIAGUEZ. NÃO CONFIGURADO. ART. 224 DO CPM (DESAFIO PARA DUELO). DESAFIO PARA LUTA CORPORAL SEM ARMAS. NÃO CONFIGURADO. APELO IMPROVIDO. I – (…) II – Para se configurar o desafio para duelo faz-se necessário que o autor, de forma direta e consciente, e por meio de palavra, proponha o duelo, o qual se caracteriza pelo emprego de arma. III – Recurso ministerial improvido. Decisão unânime. (g. n.).

A tipificação deste delito vai até o momento anterior à execução do duelo, porquanto, a partir da execução, teremos outro delito, que absorverá o de desafio para duelo, a exemplo do homicídio tentado ou consumado, ou mesmo da lesão corporal tentada ou consumada, caso a arma escolhida não tenha o poder de provocar o óbito.

Isto se dá em função do fato de despontar do preceito secundário a sua subsidiariedade expressa, porquanto a pena cominada, detenção de trinta dias a três meses (pena mínima obtida com a combinação do art. 58 do CPM), será aplicada se o fato não constitui crime mais grave, podendo o delito ser absorvido, como já dito, por homicídio.

Nesse sentido, Jorge César de Assis (2007, p. 489 e 490), após criticar visão contrária de Ramagem Badaró sustentando o concurso de crimes, traz-nos importante julgado do Superior Tribunal Militar, proferido em 6 de dezembro de 1884, na Apelação n. 1984.01.044158-1/RJ, relator o Ministro Gualter Godinho:

Crime militar – Homicídio (art. 205 do cpm), precedido do delito do art. 224 do mesmo Código (desafio para duelo) – Crime progressivo que leva à figura da consunção – Homicídio (crime consuntivo) e desafio para duelo (crime consumido) – Preliminar de desclassificação do homicídio do art. 205 (doloso) para o do art. 206 (culposo) rejeitada, por incabível – desprovimento do recurso da defesa, com a manutenção da sentença condenatória apelada, com a imposição da pena acessória de que trata o art. 102 do cpm – Decisão unânime.

Embora entendamos caso de subsidiariedade, e não de consunção, como pretende o acórdão, o fato é que o crime de desafio para o duelo será absorvido.

No que concerne ao elemento subjetivo, admite apenas o dolo, a intenção, a vontade livre e consciente de desafiar ou de aceitar o duelo.

O delito se consuma quando o autor se manifesta desafiando seu oponente. Consuma-se, ainda, com a aceitação pelo segundo, sendo impossível a tentativa na forma oral, tanto no desafio como na aceitação. Possível, entretanto, quando o desafio é encaminhado por escrito e interceptado antes de alcançar o segundo militar.

Trata-se de crime que apenas pode ser praticado por militares, de maneira que, na distinção pela teoria clássica, deve ser considerado crime propriamente militar.

Não há condição de procedibilidade neste delito, já que não abrangido pelo art. 122 do CPM, vingando, portanto, a regra geral do art. 121 do mesmo Código (ação penal de iniciativa pública incondicionada):

Propositura da ação penal

Art. 121. A ação penal somente pode ser promovida por denúncia do Ministério Público da Justiça Militar.

Por ser crime apenas existente no Código Penal Militar, por fim, está abrangido pelo inciso I do art. 9º do referido Código, o que importa dizer que não sofreu interferência da Lei n. 13.491/2017, que apenas alterou o inciso II do mesmo artigo. Assim, para que o crime ocorra, basta que os elementos típicos trazidos pelo tipo mencionado sejam preenchidos pela conduta, sem a necessidade de complementação pelo art. 9º do CPM.

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2 de Agosto de 2020