Aparentemente, as pessoas estão ansiosas para voltar logo ao “normal”, à vida que tinham antes da pandemia de covid-19. Muitas se dizem doidas para ter restaurada sua “liberdade”. Ao que tudo indica, querem retomar a marcha à qual estavam acostumadas antes do surgimento do novo coronavírus. É esse o discurso, mas será real tal desejo de resgatar a antiga normalidade? E o que é mesmo ser normal?
A normalidade é uma questão de referência. Julgamos normal aquilo que está em conformidade com nossa realidade imediata. Tem a ver com consciência de grupo e senso de pertencimento. Em um time de brilhantes matemáticos, por exemplo, o normal é ter inteligência lógica acima da média. Nesse microcosmo, ser muito bom na área de humanas, mas medíocre em cálculos seria anormal. O contrário é igualmente verdadeiro: numa turma de excelentes cientistas políticos, alguém com conhecimentos medianos em exatas seria ok, ao passo que atípico seria encontrar indivíduos extraordinariamente bons em calcular integrais e derivadas.
No Brasil, normal é ter uma renda familiar de menos de R$ 1,5 mil per capita. É estar com o nome sujo na praça – nada menos que 48% dos brasileiros tiveram o nome lançado nos cadastros de inadimplência nos últimos 12 meses, segundo o Serviço de Proteção ao Crédito, e isso antes da crise! É haver estudado em escolas ruins. É pegar transporte público lotado todo dia. É vender o almoço para pagar a janta. Para muitos, é ser inconstante, desistindo dos sonhos no primeiro grande entrave; é não se esforçar como deveria; é ser egoísta; é não perdoar.
Até mesmo em termos de saúde, o normal não é algo absoluto. O ser humano “padrão” de hoje, aquele usado como modelo para o cálculo da expectativa de vida e outros índices, está, via de regra, com sobrepeso, não se alimenta bem nem pratica atividade física. Mesmo assim, suas taxas são utilizadas como referência de “normal” para efeito de exames médicos. Estar em conformidade com esse “normal” não é tão bom assim, concorda?
O fato é que podemos ter indicadores muito melhores do que o dito “normal”. Não deveríamos nos pautar por essa linha limítrofe, vivendo em uma matriz pré-construída e seguindo normas que limitam o nosso campo de visão e, por consequência, o atingimento do nosso potencial.
O pensador norte-americano Robert Nozick, na obra Anarquia, Estado e Utopia, propõe um dilema para refletirmos sobre nosso apego ao que julgamos normal: se nos fosse dada a opção de simular à perfeição situações da vida, por meio de uma “máquina de experiências” na qual jamais conseguíssemos discernir o real do irreal, será que optaríamos por viver no mundo verdadeiro ou escolheríamos a simulação?
O clássico filme Matrix bebe dessa fonte ao provocar outros questionamentos igualmente incômodos. Preferiríamos ser controlados ou estar no controle, se a realidade se mostrasse menos agradável do que a ilusão? Elegemos a verdade sempre ou nos sentiríamos confortáveis dentro de uma normalidade ficcional se ela fosse mais “apetitosa”, como o filé de Cypher, que existia apenas na cabeça do personagem? “A Matrix está me dizendo que esta carne é suculenta e deliciosa. Depois de nove anos, sabe o que percebi? Ignorância é uma benção.” A emblemática passagem do longa traz à tona uma grande verdade: libertar-se da ignorância do cativeiro é difícil, pois ela nos dá sensação de conforto e segurança.
O roteiro de Matrix tem inspiração direta também na famosa Alegoria da Caverna, contida no livro A República, de Platão. A narrativa, que nos faz pensar sobre como somos presos aos nossos conceitos de normalidade, apresenta vários homens que passaram a vida acorrentados às paredes em uma caverna escura. Os grilhões os impedem de mover o pescoço, de modo que são obrigados a se manter olhando para a frente. Enxergam, assim, somente as sombras do que se passa no exterior de sua prisão: sombras de homens, de mulheres, de crianças e de animais. A limitada visão os faz acreditar que sombras são tudo o que há no mundo. Sombras são a realidade. Quando, por fim, um dos prisioneiros consegue sair da caverna, é cegado pela luz forte do sol, à qual seus olhos não estão acostumados. Segundo o experimento proposto pelo filósofo grego, há, então, três possíveis cenários para esse homem recém-liberto.
No primeiro, ele regressa, temeroso em relação à nova realidade que o cegou. Ao retornar, os demais, tomando conhecimento do que aconteceu com o parceiro, concluiriam que o melhor a fazer é permanecerem onde estão, dados os perigos lá de fora. O segundo cenário é o ex-prisioneiro buscar uma libertação coletiva. Depois de se acostumar à luz, tentaria convencer os demais a segui-lo, mas seria tachado de louco. A realidade descrita por ele seria absolutamente incompreensível aos que têm visão de mundo tão restrita. No terceiro cenário, o homem partiria, sozinho, para sua nova vida. Talvez apenas ajudasse quem eventualmente também conseguisse sair da caverna, dando-lhe conforto e orientando-o sobre o “novo mundo”.
Estou aqui, amigo leitor, como o homem que retorna à caverna depois de ver a realidade exterior – e sentir o incômodo instantâneo do seu brilho – para lhe dizer, mesmo correndo o risco de ser chamado de louco: o normal é uma droga. Não podemos nos contentar com o que é tido por comum no contexto em que estamos inseridos. Há todo um mundo lá fora a ser explorado, e ele é muito diferente do que dizem o IBGE com suas médias, o SPC com seu cadastro cruel, o Jornal Nacional com seus dados nus e crus. Há um mundo no qual o normal é estar fora da matriz, é brilhar, é fazer a diferença na vida de um estranho, ajudando-o a se tornar melhor dia após dia.
A crise sanitária que estamos vivendo tem exigido de nós uma tentativa de retomada da vida que já é anormal, por si só, dada nossa limitação de interação com os outros. Está difícil demais para todos. Assim como você, quero que essa restrição acabe o quanto antes, não suporto mais ver as pessoas de máscara nas ruas e estou no meu limite quanto ao distanciamento social que nos foi imposto. No que diz respeito a esses pontos, também anseio voltar ao “normal”. Contudo, peço-lhe – na verdade, imploro –: não permita que as coisas voltem ao normal de antes, se esse normal tinha a ver com rotinas ineficientes, um emprego ruim, estudos irregulares, refeições pouco nutritivas e falta de cuidado consigo próprio. Não espere a descoberta da vacina ou de um tratamento eficaz para começar a construir seu novo normal, tendo em mente que, depois de um grande trauma, como a perda de um ente querido, uma guerra ou uma pandemia, as coisas nunca voltam a ser como eram. Seja para o bem, seja para o mal, uma tragédia – individual ou humanitária – nos modifica a todos, e é nossa a responsabilidade de moldar o melhor novo caminho possível.
E como há de ser esse novo normal? Ainda é cedo para dizer, mas acredito que passará por algumas mudanças bem significativas de paradigma. Imagino, por exemplo, que deixaremos de nos sentir obrigados a sempre agradar, a dizer “sim” para tudo e todos, a seguir a manada. Não mais. Precisaremos de gente que faça a diferença, atuando na própria vida como a pessoa que gostaria de ter ao lado nos dias ruins. Precisamos de gente com senso de propósito, movida pela vontade de fazer a coisa certa para si, a família e a comunidade, mesmo que seja necessário cortar a própria carne sem ter certeza do resultado. Estou certo de que, quando esse for o novo normal, o mundo será um lugar melhor.
No mundo pós-pandemia, caracterizado pela conversão de certezas em incertezas, pela efemeridade das coisas, por líderes se reinventando, por mudanças ainda mais rápidas, nada será perene, muito menos definitivo. Quem não encontrar a própria identidade nem achar a motivação certa ficará pelo caminho.
Por isso, sigamos juntos, transpondo a anormalidade mais imediata em busca de um novo normal, sendo genuínos e agindo com o coração, sempre apreciando o caminho e não apenas a chegada.
“Normalidade significa morte.” – Theodoro Adorno (1903-1969), filósofo alemão
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Fontes: Agência Brasil e G1.com
PLATÃO. A República.
NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia.
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Gabriel Granjeiro – Diretor-Presidente e Fundador do Gran Cursos Online. Vive e respira concursos há mais de 10 anos. Formado em Administração e Marketing pela New York University, Leonardo N. Stern School of Business. Fascinado pelo empreendedorismo e pelo ensino a distância.